O OURO DE VEXAMINÁ

Julho 22, 2023 0 Por admin

Nenhum deus havia de querer aquele padre, sem dó nem piedade da gentilidade que habita as cercanias de Uraxá; cruel, ganancioso e dissimulado, que se fazia de “eré” diante dos nativos, para saber o caminho da capela de ouro nas matas de Vexaminá, rio que banha as terras de Uraxá. Assim pensava Mango, índio das barrancas do rio, sobre aquele religioso miserável. Todo ano na vazante era a mesma coisa, lá vinha o tal padre querendo saber onde “havia de ter mais índio para a catequese”, “pra levar os índios embora e ficar preso na cidade trabalhando na igreja… pra formar uma associação de proteção dos índios… para receber ajuda do governo da província”. Essa viagem não tinha volta… Dessa vez ele vai se arrepender de vir perturbar aqui na floresta… Vai ver que era por isso que os “manos” índios fugiam sempre que o barco dos “brancos” subia o rio…

Neste ano vai ser diferente, resolveu Mango. Se o padre chamar de novo, eu vou… mas, vou pra aprontar, pensou. Nem bem as águas baixaram, lá vinha o desgraçado do padre em busca da ajuda dos negros e índios do Vexaminá. Além dos nativos, dessa vez o padre tinha outro inimigo pela frente: Konduri, deus de todas as coisas, no céu e na terra resolveu agir para tentar impedir essa invasão nos castanhais e rios de Uraxá, e o desterro de seus filhos das matas do Vexaminá.

O padre queria recrutar os nativos guiar seu barco rio acima. “Venham, meus irmãos em Cristo! … venham participar do evangelho e salvar suas vidas…”, clamava o padre ao desembarcar no porto de Mango. A gentilidade se reunia no terreiro da casa de Mango para ouvir aquela historia contada pelo padre. Falava de almas, de Cristo, de uma cruz de madeira, de pregos, de subir aos céus… Era assim todo setembro, mês que ainda se ouvem os sinos e o foguetório ecoando pelos castanhais, revivendo a saga de outro jesuíta tardio, morto pela cobiça e avidez das almas conquistadas.

Mango lembrou da velha história que seu pai repetia, contada por seu avo, o velho Fragata. Nela, Konduri ainda mantinha preso nas cavernas do Vexaminá o espírito do padre Nico, jesuíta audacioso, destemido, perseverantemente e bastante corajoso para se enfurnar naquelas matas contaminadas pelos mosquitos da malária. Porque reviver o cenário já há muito esquecido pelos indígenas de Uraxá? Não guardam boa recordação os massacres em nome de Cristo praticados pelos europeus no século XVIII, quando as tropas de resgates atingiram o rio das Trombetas e enveredaram pelo rio Vexaminá, como os franceses chamavam este rio, até as cachoeiras.

Naquele tempo, os portugueses diziam que havia tanto índio no grande rio das amazonas que se pusessem em açougue não ia faltar. Os religiosos disputavam com o povo e governantes a posse dos índios cativos, em guerra justa, no resgate ou pelo descimento. Acumularam riqueza e ódio. Aquela feita de adornos, fazendas de cacau e gado, igrejas e poder de vida e morte sobre os nativos despojada quando partiram na expulsão pombalina. Este sentimento paira por séculos e séculos, gotejando nos espíritos inquietos que navegam por sobre as florestas, especialmente nos castanhais do rio Vexaminá.

Mango achava que ia acontecer o mesmo com este novo padre bisbilhoteiro. Era uma questão misteriosa para Mango tentar entender o que se passava na mente de Padre Lino. Ele acabara de chegar da Europa, após anos no noviciado e formação sacerdotal. Com umbigo enterrado nas areias da cidade de Faro, vizinha de Uraxá, não demorou muito pela capital, cuidando logo em ser removido para as bandas do rio das Trombetas.

Padre Lino tinha sangue cabano mesclado com índia. Nascera nos recessos da luta desbragada travada pela posse das almas. Expulsos do epicentro da cabanagem que arrefecia no interior da provínica, muitos valentes arribavam as barrancas do Amazonas, indo bordejar as terras de Uraxá. Nas centelhas e faíscas do amor e ódio nativo presente no jugo indígena rebenta a placenta de uma nova vida. Reduzido a um convento religioso na infância, não demonstra sentimentos nativos; afeito aos estudos das obras religiosas, logo pega gosto pelo latim, poder e voz, informação e morte.

Subindo e descendo os rios de Uraxá, Padre Lino repete a história sem se dar conta da litigiosidade contida nas almas indígenas. A oralidade dos gentios, como chamavam os jesuítas para os índios, era prenhe das mazelas que os brancos tinham aplicado nas suas gentes. Na vizinha Faro, houve a maior rebelião indígena que se tinha notícia no mundo das florestas de Vexaminá. Aliás, os Uabois e Pauxis lá tiveram seus desencontros, resultando nessa miscigenação formadora da atual gentilidade. Todo esse imaginário foram sendo repassados por várias gerações. Revoltas, emboscadas e infortúnios ainda o aguardavam mais dias menos dias.

Mango sabia que naquelas eras faltava gente para o trabalho nas lavouras e pastoreio de gado. As ervas, o cacau e as fazendas de gado exigiam trabalho árduo e constante para manutenção de uma vida em harmonia com a natureza e o ciclo das águas, quando não sob o jugo do colonizador, travestido de governante ou religioso. O imperador lá do governo central havia dado liberdade aos negros e a nação ainda não estava pronta para arcar com tudo isso sozinha. Na região amazônica, renovaram-se as tropas de resgate ao sertão em busca do indígena, em busca das almas para o descimento religioso. O europeu colonizador não era do braço, de fazer o serviço pesado, mas do ócio, da libertinagem, da ganância e opressão. Era a ralé da classe nobre decadente que vinha para o novo continente apostar o saber do ocidente, contra a pajelança dos nativos, vencendo algumas vezes na violência da técnica, perdendo quase sempre no decurso do tempo, pela avareza diante do invencível avanço das luas, com uma noite de entremeio, outras caindo diante das defesas naturais da biodiversidade natural, aqui uma cobra, ali um mosquito, acolá uma onça, uma febre, uma reza, depois encomendação das almas.

Os comerciantes de Óbidos não tardam em financiar Padre Lino nos moldes do passado jesuítico quando a alma indígena era monopólio da Companhia de Jesus. Divididas pelas ordens religiosas as terras do Estado, as de Uraxá pertenciam aos Capuchos da Piedade e Franciscanos. Mas, o modus operandi era o mesmo dos jesuítas. Travestidos de protetor dos índios, chamavam a si a responsabilidade de chefiar os resgates e com honra religiosa faziam a partição dos resultados conseguidos na viagem.

De terço em terço nutriam a fé e a empresa; para uns rezavam enquanto noutros separavam. Era uma parte do governo, outra dos comerciantes e outra mais para a aldeia, a cargo dos religiosos. Assim Padre Lino sai em busca dos meios irmãos cuidadosamente financiado pela ganância dos comerciantes e pela fé. Mango se espantava quando suas idéias lhe davam tais conclusões. Bastava lembrar-se das histórias de seu pai para lhe avivarem as idéias sobre esse passado não escrito.

Quanta vontade de estudar para saber escrever suas visões e memórias já vividas, ao longo das era, pensava consigo Mango. Mas, um dia aprendo as letras de carreirinha eu vou contar tudo o que sei e já vi acontecer por aqui. E continuava a lembrança da velha história… Na curva do rio Vexaminá, o primeiro aviso para Padre Lino: a frota de três canoas sofre perda parcial com o brusco desaparecimento de uma delas, com tripulação e mantimentos fulminados pela força das águas em redemoinho gigantesco. Gritos, rezas e pulos n’água não bastaram para aplacar a fúria de Konduri. Ele sabia das intenções do novo jesuíta…

A ordem de Padre Lino foi cumprida. Logo encostaram a dupla de naus e imediatamente foi erguida uma cruz e se puseram a rezar. Ali foi a primeira missa e encomendação das almas para os infelizes náufragos. Lá ficaram ossos e rezas ecoando pela eternidade em busca da salvação.

Manhã seguinte, melhor sorte tiveram os navegantes e andou bem a empreitada de Padre Lino. Reconheceram pelo nome alguns parentes dos índios remeiros e batizaram outros tantos lugares pela nomenclatura do religioso, agora treinado na Europa para registrar em diários as ações da viagem exploratória.

Nas voltas do tempo também Konduri acompanhava com seu séqüito os invasores da floresta de Uraxá. Nada ia ser como antes, quando os nativos eram subjugados pela cruz de cristo e se apresentavam dóceis ao trabalho nas aldeias. O espírito bom e quieto dos nativos havia aprendido as mazelas dos brancos, a maldade e astúcias do velho mundo, presente em demasia nas gentes degredadas trazidas para povoar o território de El Dorado.

Konduri decidira não perdoar as injustiças praticadas pelos jesuítas no século passado, nem em qualquer tempo. Afinal, cabia a ele decidir os assuntos de sua gente. Ainda se lembrava dos cadáveres de índios cativos jogados n’água quando não suportavam os maus tratos dos capitães de bordo durante a viagem ao Pará; dos restos humanos espalhados nas praias quando deliberadamente os infelizes pulavam dos igarités para a morrer nos dentes das piranhas e jacaré… Apantos, Aroaeses, Omáguas, Abuís e tantas outras nações já haviam desaparecido nas mãos dos religiosos e capitães de tropas de resgate.

Desta vez não! Konduri sabia o que Padre Lino estava buscando e para onde se dirigia. Para isso, trovejou um aviso aos espíritos da floresta a preparar exemplar recepção ao religioso, dar as boas vindas àquele que vinha buscar algo mais do que novas almas…

No terceiro dia a expedição religiosa para descimento de almas indígenas padeceu as agruras lançadas pelos revoltados espíritos. De repente, a correnteza do rio muda de sentido e joga cachoeira abaixo, a segunda canoa de remeiros, intérpretes de índios e mantimentos da viagem. Foram setenta metros de pânico, borbulhas revoltas, pedras pontiagudas e vôos livres para estatelar nas rochas escuras do leito do rio os corpos de mais doze almas libertas da nefasta missão.

Novo desembarque, nova missa e outro funeral. O caminho do padre parecia um calvário de almas. Agora só uma canoa conduzia o perseverante Padre Lino. “Sem fé, nada se constrói, nada se conquista. Sejamos fervorosos na missão para conversão das almas de nossos irmãos nativos” dizia o padre aos quatro homens e duas mulheres que restavam a bordo.

Começa a agonia da missão. Konduri mudava as embocaduras dos rios a cada manhã. Ao final da tarde, Padre Lino marcava no seu mapa o percurso do dia, tendo o cuidado de registrar as referências geográficas e pontos cardeais. Conferia com os sinais discretamente codificados nas páginas da sua inseparável bíblia. Havia um roteiro a seguir desde o início da viagem. Pela manhã, qual era o desespero do Padre Lino e seus acompanhantes quando encontravam à esquerda uma ilha que no dia anterior estava à direita da praia onde acampavam.

Não era possível o que estava acontecendo! Tinha que haver uma explicação! – argumentava Padre Lino. Não se podia tratar de uma provação, porque não estava ele buscando nada contra as sagradas escrituras, pensava o religioso. Nem era preciso dizer que o temor se alastrava pelas ingênuas almas dos expedicionários. Padre Lino decretou o fim de tudo isso. Percebeu que podia ser alguma reação dos céus por causa do real propósito da missão. Precisava ter certeza de tal imaginação. Afastou-se do grupo alegando precisar orar sozinho.

Konduri acompanhava tudo do alto de uma nuvem. Os espíritos de Uraxá estavam animados e confiantes na sua liderança. Tinha chegado o juízo final, o dia do acerto de contas com aquela gente exterminadora dos indígenas.

Padre Lino sentou debaixo de uma grande castanheira e rezou. Pediu perdão por seus pecados e sangrava os joelhos quando um ouriço de castanha despencou atingindo-o na cabeça. Levantou-se e viu bem à sua frente a porta da caverna com o sinal da cruz dos jesuítas. Entrou, e viu as maravilhas da riqueza terrena. Ao longo das paredes da caverna, diligentemente arrumadas umas sobre as outras, pequenas barras de ouro com o selo da coroa portuguesa do século XVII; adornos de altar, obras de arte e pinturas que guarneciam as igrejas dos jesuítas; relatos escritos e muitos mapas de localidades conhecidas da província.

Mapas dos quais viu cópias nos seminários europeus por ocasião dos estudos religiosos. Vinha a sua mente a conversa que teve com o velho mestre francês… Era tudo verdade. Pensou em remover uma pedra que estava à sua direita. Mas, antes, precisava conferir uma informação na sua bíblia. Procurou e achou que nada tinha sido em vão. Rezou e pediu perdão mais uma vez pelas vidas perdidas na falsa missão religiosa, agora revelada.

De repente, levou um susto tremendo! Relutou ao tentar passar por sobre uma pedra maciça e quase leva um tombo ao tropeçar num caixão que surgiu à sua frente. Removeu a poeira da cruz jesuítica, e afastou a tampa de lado: outro susto! Um brilho revelou uma roupeta dourada que ainda protegia um corpo intacto. Passou a mão e limpou a marca do tempo e pode contemplar o santo padre jesuíta Carvalho de Melo, jazendo há mais de cem anos, com uma carta sobre o peito. Leu e chorou…

O macaco de tiro certeiro obedece fielmente às ordens de Konduri. Nada foi retirado da caverna, nada de lá saiu, nem o padre. Até hoje se ouvem os sinos tocando a sinfonia dos castanhais, adornada pelo foguetório na alvorada dos dias de agosto a novembro, infinitamente.