Hoje faz sete dias desde que meu pai, José Luiz Ferreira de Almeida, fez sua última viagem. Não foi no Tigre, nem no Leão, nem na balsa Leoa, muito menos no Anhanguera — embarcações que ele mesmo idealizou, construiu e comandou com orgulho nas águas do Trombetas e do Amazonas; a última ficou no imaginário, no seco, nunca molhou o talha-mar. Foi uma travessia silenciosa, sem motor roncando ou correnteza cortando. Partiu rumo ao mistério, deixando em terra firme o eco da sua história e um rastro de saudade viva.
Nascido em 21 de fevereiro de 1933, ele aprendeu desde cedo o valor das árvores, da madeira, da ferramenta e do trabalho. Em 1953, com vinte anos, seguiu para Belém em busca de estudo, carregando no peito mais sonhos que roupas. Passou antes por Abaetetuba, fez aprendizado nos estaleiros, aperfeiçoou a goiva, esmerilhou a enxó, alinhou a alma. Voltou para Oriximiná, onde fincou raízes com mãos calejadas e espírito empreendedor. No Iripixi, trabalhando com o senhor Raimundo Guerreiro, comprou as primeiras máquinas do que viria a ser a Serraria São José, marco de uma era, símbolo de força e visão. Frei Mário abençoava os primeiros empreendimentos com reza e fé indelével. Tia Assunta organizava as inaugurações de uma nova empreitada, fosse na Serraria ou no novo Clipper de Santo Antônio, no círio ou nas ferras de gado nos janeiros chuvosos do Tachi.
Ali começaram as grandes jornadas — de madeira e de vida. O Leão, veloz e destemido, desafiava os rivais nas corridas de rio, fazendo o percurso de Oriximiná a Parintins em impressionantes 11 horas, mesmo carregado de madeira. Vieram depois o Tigre, com sua bravura silenciosa, e a balsa Leoa, robusta como o nome, rasgando os rios para transportar sonhos serrados em prancharias e tacos de angelim, cedro, sucupira, jatobá e massaranduba.
Na década de 70, o negócio se expandiu até Parintins, onde, ao lado do compadre “João da Madeira”; criou uma ponte de confiança com o mercado para Recife, embarcando cargas inteiras em navios de cabotagem como o São Paulo e o Ponta da Areia, que atracavam no Trapiche Municipal. Era um evento: a cidade parava para ver os cabos de proa atados nas mangueiras do Cai-Cai, e a popa dos navios presa na famosa “mangueira do Carapina”.
Mas entre tantas partidas e chegadas, essa de agora foi diferente. Ele deixou a carpintaria, as conversas de varanda, o olhar atento às coisas simples e as viagens imaginárias. E nos deixou. Ficou a serraria em silêncio. Ficou o barco ancorado. Ficou o vazio cheio de lembranças.
E ficou minha mãe, sua companheira de vida, agora viúva, acolhida pelo carinho dos filhos. Ficou conosco, embalando a saudade no colo, ouvindo histórias, revivendo dias felizes e tristes, sonhando com os tempos em que ele voltava para casa com o cheiro de madeira e o sorriso cansado de quem cumpriu seu ofício com dignidade.
Eu, que saí de casa aos doze anos para estudar no Colégio Dom Amando, e segui por tantos caminhos — Nazaré, UFPA, CESEP, Banco do Brasil — voltei. Voltei para junto dos meus pais depois de 53 anos. Voltei a tempo de partilhar cuidados, escutar histórias, rir e silenciar com ele. E é isso que me consola agora.
Neste sétimo dia, meu pai não está ausente — ele está espalhado por tudo que fez: no madeirame de uma casa, no ronco de um motor de barco, na sombra das castanheiras do Sacuri, no vento das mangueiras, no trapiche imaginário, na alma dos filhos, na saudade da esposa.
José Luiz Ferreira de Almeida, carpinteiro de profissão, homem de honra, navegador de águas doces — que teu espírito encontre repouso entre os mestres carpinteiros do céu. E que nós, aqui na terra, saibamos seguir com teu exemplo a nos guiar, como um leme invisível nos dias de mar revolto.