Ambiente Trombetano *

            Ainda no capítulo da história da região não é possível omitir a introdução de um estudo sobre a bacia do rio Trombetas, de autoria do pesquisador Victor Leonardi[1] ao contextualizar seu projeto de tese escrito para o concurso de seleção ao Programa Transdisciplinar de Doutoramento em Economia Ecológica da Universidade de Brasília, nomeada de Ecologia e Mineração na Amazônia – história Econômica e Ambiental do Vale do Rio Trombetas, Brasília, março de 1994, para quem a história empresarial tem sido pouco valorizada nas universidades brasileiras.[2]

            Os primeiros cronistas coloniais da Amazônia dão poucas informações sobre o Trombetas. A viagem de Francisco de Orellana, relatada por Carvajal, em 1541-1542, deixa-nos, entretanto, uma imagem muito viva dos habitantes deste afluente do rio Amazonas. Gritando e tocando enormes trombetas, os autóctones defenderam suas aldeias diante da inesperada e repentina chegada dos soldados espanhóis , comandados por Orellana. Como a expedição não fora planejada, os ibéricos quase sempre se sustentaram, no decorrer dessa viagem, atacando aldeias indígenas para se abastecer. A comida era abundante, como relata Carvajal (peixes, tartarugas, aves aquáticas), e a população numerosa[3]. Vem desse primeiro contato com o Rio Trombetas o nome atual de toda a região amazônica, inclusive do grande rio, que dá nome a esta bacia hidrográfica, pois Carvajal observou, no Trombetas, mulheres de cabelos compridos atirando flechas e lutando com mais coragem do que os homens. Lembrando-se da lenda grega, chamou-as de amazonas.

            Até os relatos de Frei Gaspar de Carvajal, sacerdote da expedição de Orellana, o rio Amazonas se chamava de Santa Maria Del Mar Duce, nome dado no ano de 1500 pelo navegador espanhol Vicente Yanez Pinson, na histórica viagem realizada antes do descobrimento do Brasil. Foi outro padre viajante na expedição de Pedro Teixeira no ano de 1637, Cristobal d’Acunha, que divulgou a lenda das amazonas no Velho Mundo. De acordo com os registros de Martius[4] que se baseou no relato dos dois religiosos “….desembarcada a guarnição de Orellana, que aportara na foz do rio Cunuris[5], sofreu o ataque de índios em cujo número combatiam mulheres, e, portanto, este sítio é ponto clássico para a etnografia e geografia do rio maior (Amazonas) que deriva o nome desse fato, tantas vezes floreado e posto em dúvidas.”[6]

            Não são muitas, como se percebe, as informações deixadas pelos primeiros cronistas a respeito do rio Trombetas. Durante muito tempo a História do Brasil foi escrita de forma etnocentrista, aparecendo a Europa como centro civilizador e os povos autóctones da América como bárbaros. Foi somente no início das pesquisas arqueológicas na região amazônica que esses preconceitos começaram lentamente, a ceder terreno pra uma historiografia de novo tipo. Nos anos mais recentes a Etno-História e a Eco-História – ou História Ambiental – tornaram ainda mais ridículas as pretensões eurocêntricas anteriores, que faziam do primeiro contato com o branco  – o “descobrimento” – o marco zero da história amazônica. Diante desses avanços arqueológicos e historiográficos, o passado do rio Trombetas já pode ser hoje apresentado de forma mais precisa. A bibliografia existente será comentada a seguir de forma sucinta. E as principais informações serão reunidas a título de introdução à história desse importante rio do Pará Setentrional.

            Sobre o Povoamento Inicial relatado pelo doutorando Victor, consta que os primeiros estudos da cerâmica atribuída aos Conduri foram feitas por Peter Paul Hilbert e publicados em 1955, num pequeno livro intitulado A Cerâmica Arqueológica da Região de Oriximiná.[7] O autor analisa um importantíssimo material pré-histórico  coletado entre Óbidos, Terra Santa e Nhamundá[8]. Fica evidente a importância dessa cultura pré-colombiana no Trombetas, pois a cerâmica é muito bem elaborada, com detalhes surpreendentemente finos e elegantes, que revelam a existência de artesãos qualificados vivendo às margens desse rio. 

            Vinte e cinco anos depois, o Museu Paraense Emílio Goeldi deu início a uma série de pesquisas arqueológicas na mesma área, com apoio financeiro da Mineração Rio do Norte. Os trabalhos de campo foram realizados em quatro etapas (uma em 1981, duas em 1985 e uma em 1988) e o relatório preliminar – redigido em 1990 por Klaus Hilbert, descreve 47 sítios arqueológicos existentes nas imediações de Porto Trombetas, Lago Batata e Serra do Saracá. Segundo K. Hilbert, o “número de sítios arqueológicos da região poderia indicar um denso povoamento pré-histórico indígena durante um período aproximado de 2.500 anos de ocupação. A importância dessa área não se refere somente ao espaço-tempo (localização e antiguidade), mas à oportunidade de estudar antigas culturas amazônicas através de uma abordagem ecológica, considerando os diferentes nichos adaptativos detectados na região: ambiente ribeirinho, várzea, terra firme e serra. A alta densidade demográfica sugerida pela quantidade de sítios localizados poderia se uma prova da intensa capacidade de manipulação, localização, produção e exploração dos recursos oferecidos pelos diferentes nichos ecológicos”.[9]

            A seguir vem a descrição sumária, feita por Hilbert, dos 47 sitios arqueológicos, dentre os quais destaco o de Boa Vista (margem direita do Trombetas, aproximadamente 1 kilometro a maontante da Mineração Rio do Norte), o de Hakibono (margem direita do lago Batata, a 10 kilometros de Porto Trombetas), o do igarapé do Moura e o da Ilha Caranã.

            Dado o caráter ainda inicial dessa pesquisas – dos 47 sitios arqueológicos descobertos, apenas 4 haviam sido parcialmente estudados até 1990 – pouco se pode dizer a respeito da vida desses primeiros habitantes do vale do rio Trombetas. Não se pode, inclusive, relaciona-los de forma direta com os indígenas que os cronistas coloniais encontraram entre os rios Nhamundá e Trombetas nos Séculos XVI e XVII, pois nesses dois milênios anteriores, muitos outros povos, geralmente semi-nômades, podem ter passado pela região. O que se pode, porém, afirmar desde já, é que a história do povoamento inicial desse rio é muito anterior à chegada do colonialismo europeu, nada justificando, portanto, a versão eurocentrista da História da Amazônia que até há pouco tempo ainda predominava nas escolas brasileiras.

            A idéia de quem chegou primeiro em determinado lugar ainda desperta paixões seladoras de grande identidade com o meio ambiente. Ao largo da linha histórica avassaladora de que tudo aconteceu após uma causa primeira, os primeiros contatos com a chamada civilização aconteceram de forma diversa para cada tipo de povo habitante nas margens do rio Trombetas. Se hoje os negros herdam direitos constitucionais em função de sua ancestralidade, que dirão os oriximinaense caboclos descendentes direitos dessa gente autóctone forjada no cadinho cultural dos omáguas, aroaese, apantos, condurizes, abois, etc…  cujas pesquisas arqueológicas já autoriza a falar em civilização antiga?

            Assim é que a língua Kaxuyana pertence ao tronco lingüístico Karib. O Rio Trombetas era chamado, por esses índios de Kahu, e seus habitantes de Kahu-yana. Kaxuyana, portanto, significa “gente do Trombetas”. Protásio Frikel estudou os Kaxuyanas e sobre eles publicou alguns artigos na Revista do Museu Paulista, em 1953 e 1955. Segundo esse autor, a mitologia Kaxuyana se refere a dois grandes cataclismas que teriam destruído esse povo em épocas remotas, nas áreas dos rios Trombetas e Cachorro, seu afluente pela margem direita. O primeiro povo mencionado pela tradição oral desses índios teria sido destruído pela “grande enchente”. Os poucos sobreviventes repovoaram a mesma área, mesclando-se a outros indígenas vindos do rio Amazonas, da parte oriental do grande rio. Teriam sido, por sua vez, destruídos pelo “grande fogo”. Novos imigrantes indígenas, os Warikyana, vindos do Baixo Amazonas via Paru do Oeste, integraram-se aos antigos habitantes do Trombetas, e é este povo, que já conhecera sucessivas mestiçagens e aculturações, que foi contactado pelos primeiros colonizadores portugueses. Esta última onda migratória deu-se por volta do Século XVIII, dela se originando uma série de sub-grupos Kaxuyana: os Kaxuyana propriamente ditos, os Warikyana, os Kahyana e os Ingarune. Segundo Protásio Frikel, as relações entre esses povos do Trombetas e afluentes tanto foi pacífica como guerreira ao longo do tempo. E foi nesse estágio que frei Francisco de São Mancos conheceu-os, no início do Século XVIII. O relato desse missionário – considerado o “descobridor” do Trombetas- descreve os “caxorenas” entre 1725 e 1728.[10]

            Foi também frei Francisco de São Mancos quem primeiro descreveu os índios do Mapuera, rio da bacia do Trombetas: os Xereu e os Wabui. Estes últimos, antes de terem sido aldeados em Faro, no Nhamundá, viviam às margens do Trombetas. Os índios HixKaryana, hoje majoritários na aldeia Cassauá, do Nhamundá, provavelmente descendiam também daquele grupo transferido do Trombetas para Faro, por Frei Francisco de São Mancos.[11]

            Veja-se a riqueza de detalhamento a que os primeiros exploradores chegaram a fazer sobre a região. Ainda incomoda o pensamento quando gente alheia aos interesses locais afirma não existir bibliografia  que permita estudar a região, e passa a inovar e mistificar as questões regionais. Ao final desta obra, listaremos dezenas de livros que foram produzidos por aqueles que já fincaram os remos nas “plúmbeas águas do Trombetas”.

            Este capitulo não estaria completo se não mencionasse o principal explorador do vale do Trombetas, não exatamente o curso principal do rio, mas o principal afluente histórico que é o Cuminá, ou Erepecuru. Padre Nicolino conta detalhes em seus diários, mas o que mais autoriza sua inclusão nesta obra é o fato de que foi este farense que ensinou a pensar as questões locais a partir dos seus registros e preocupações, sempre presentes nas suas ações de sacerdote, explorador de selvas.

Desta maneira, no apêndice o leitor vai encontrar a transcrição integral de “Diários das Três Viagens de Padre Nicolino”, publicação elaborada a partir do manuscrito histórico do religioso, hoje na biblioteca particular dos familiares do Gen. Cândido Mariano da Silva Rondon, no Rio de Janeiro.

            Ao fechar estes relatos históricos, voltamos a Victor Leonardi para verificar a carência de teses, digamos, sociais sobre os impactos da mineração no vale do Rio Trombetas.  Como se percebe, se alguém fosse hoje escrever um tratado sobre as riquezas minerais do Brasil, e as industrias a elas relacionadas, dedicaria, por certo, um espaço imenso (vários volumes talvez) à bauxita e à industria do alumínio, e não mais página e meia, como fez o ilustre e competente Fróes Abreu, em 1936. Num curto espaço de tempo – em termos históricos- esse setor da economia brasileira foi completamente modificado. E , no entanto, os historiadores da economia ainda não dedicaram ao alumínio a atenção que merece. A bibliografia relativa ao ferro e seus minérios é muito extensa, desde o Século XIX (a primeira forja, de Araçoiaba, imediações de Sorocaba, é do século XVI). A mineração do ouro também recebeu uma atenção muito grande da História Econômica do Brasil, principalmente o Século XVIII, em Minas Gerais,  Goiás e Mato Grosso. Há vários estudos importantes sobre o carvão ( a alma das industrias, como dizia Fróes Abreu), e um número ainda maior sobre o petróleo. Mas outros minérios (níquel, manganês, estanho, tungstênio, areias monazíticas, titânio, cromo, chumbo, bismuto, molibidenio, platina) ainda não foram devidamente incorporados à historiografia brasileira, embora existam depósitos no Brasil e, às vezes, a mineração já tenha sido iniciada há muito tempo. Este é o caso da bauxita. Muito bem estudada por geólogos, engenheiros de minas, químicos e alguns macroeconomistas, a bauxita ainda não recebeu o destaque que merece na história econômica do Brasil. Embora o Brasil tenha se tornado o terceiro produtor mundial! A decisão de escrever esta tese visa, entre outros objetivos, o de suprir um pouco essa lacuna.[12]

            É preciso tirar a bosta do boi dos saltos da gente de Oriximiná e deixar cair a poeira da bauxita, vermelha, ardente e pujante na economia nas camisas de todos. O curral é limitado pela cerca das grandes fazendas e pequenos feudos, isolados na renda própria, enquanto a mina espalha a poeira mineral no ar com chance de contaminar a todos com o pó do desenvolvimento aberto para toda a sociedade.


[1] doutorando em Economia Regional, visitou e estudou em Porto Trombetas, Oriximiná, em 1982 e 1993.

[2] idem, idem, ob. Citada. Pág. 05

[3] apud Maurício de Heriarte, provedor-mor e auditor do governador, em publicação no ano de 1697, informa que “…é um rio mui povoado de índios de diferentes nações: conduris, bobuis, aroaeses, tabaos, curiatos e outras muitas; todos possuem seus próprios ídolos, cerimônias e governos…” N A

[4] Martius, Freiherr Von. Reise in Brasilien, Munchen, 1831

[5] antigo nome do atual rio Nhamundá. N. A.

[6] artigo para o jornal Urua Tapera, em novembro de 1992

[7] Na verdade há uma pequena e substancial incorreção a admitir veracidade nessa afirmação, pois, foi Curt Niemundaju, em 1927, que em Santarém fez estudos sobre essa cerâmica que batizou como konduri. Peter Hilbert continuou esses estudos e localizou na região de Oriximiná as coletas do material arqueológico popularmente chamada de caretas pelos habitantes da região.

[8] Ao omitir o nome da cidade de Oriximiná, sede principal das pesquisas de campo de Peter P. Hilbert, o pesquisador doutorando parece cumprir uma diretriz básica da administração de Porto Trombetas que até hoje não informa o nome do município em suas publicações em geral.

[9] Hilbert, Klaus. Salvamento Arqueológico na Região de Porto Trombetas. Relatório 1990, Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 1990.

[10] Apud Victor, obra citada, página 10

[11] idem, idem

[12] idem, idem, pág. 11

  • * este é um capítulo do livro Kondurilândia, lançado em abril de 2000, no Restaurante Jacitara, tendo o autor autografado 70 exemplares no evento

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