Os diários do Padre Nicolino – 1ª parte

  • a seguir, Transcrição ipsi literis do manuscrito original arquivado na biblioteca particular da família do General Cândido Mariano da Silva Rondon, no Rio de Janeiro, RJ.

EPÍLOGO

      Deixar falar quem sabe é atitude coerente com a história e fatos aqui narrados de próprio punho. Entretanto, há que se contextualizar a narrativa para buscar a maior aproximação daquele espírito inquieto do religioso, por onde passava, com quem falava, o que fazia e principalmente, o que disseram dele logo após a fatídica morte nos campos do Cuminá Grande, como dizia para o atual Erepecuru.

      Mas, a maior razão destes relatos é a disponibilização das narrativas para a necessária comparação de datas, fatos, nomes de lugar e pessoas, por cada qual que se dispuser a pesquisar a nossa história, e assim, reconstruir o grande imaginário local, base de todas as nossas ações.

      Assim, transcrevemos trechos de uma publicação histórica na capital do Pará, por volta do início do século XX (1900).

      “Tendo a Sociedade de Estudos Paraenses de dar á publicidade em sua Revista o Roteiro das Viagens que emprehendeu[1] o padre José Nicolino de Souza no rio Cuminá, affluente do Trombetas, julgo opportuno dar algumas notícias sobre a vida e as explorações d’aquelle prestimoso sacerdote.

      Em 28 de setembro de 1890, cheguei a Uruá-Tapéra, florescente povoação á margem esquerda do Trombetas, que poucos annos antes havia sido fundada pelo Padre Nicolino.

      Foi em Dezembro de 1877 que, sendo elle então vigário de Óbidos, veio á este logare, e, de terçado em punho, começou a desbravar o terreno, ajudado de alguns homens, que para esse fim havia convidado.

      Depois, graças á benéfica influencia que exercia sobre todos os seos parochianos, vieram novos trabalhadores, lavradores e commerciantes, que edificaram excellentes prédios, uma pequena Ermida[2] sobre o cume de um outeiro, á margem do rio, e elevaram a nova povoação ao grão de prosperidade, em que actualmente se acha.

      Da porta da Ermida vê-se perfeitamente a margem opposta, a corrente de água fresca e cristalina que o rio Jamundá traz em tributo ao opulento Trombetas.

      Foi á margen do Jamundá, na Villa de Faro que, em humilde cabana nascera José Nicolino de Souza, em 10 de Agosto de 1836. Fez seos estudos primários no modesto collegio S. José, que o venerando Bispo D. José Affonso de Moraes Torres havia fundado em Óbidos para dar ensino aos meninos pobres destas regiões.

      Outra não menos venerado Bispo, D. Antonio Macedo Costa, que tão heróicos esforços fez para levantar o nível moral e intellectual do clero de sua diocese, tendo occasião de conhecer o bom coração de José Nicolino, o mandou para a França estudar as matérias necessárias para um ministro do altar.

      Seguiu em 1862, contado já vinte e nove annos de idade, fez todos os preparativos no seminário de Serigueux, e depois passou para o de Aire, onde concluiu o curso theológico.

      Regressando ao Pará já com ordem de Presbytero, foi logo encarregado de leccionar no Seminário Menor da Capital.

      O Padre Nicolino era filho de uma índia, e pois descendente dessas pujantes tribus que em remotas eras dominaram como soberanas o rico Valle do Trombetas. Uma força occulta e irressistível attrahia sua alma contemplativa para aquellas explendidas regiões. Á seo pedido foi pelo seo prelado dispensado do magistério que exercia no Seminário da capital, e nomeado vigário de Monte-Alegre, e depois de Óbidos em 1875. Então teve occasião opportuna de realisar um pensamento que desde longo tempo o preoccupava; era o de penetrar n’aquelles vastíssimos desertos do Trombetas.

      Quando, no Seminário de Aire, em França, fazia seos estudos theologicos, dirigido pelos padres da Companhia de Jesus, o velho Padre Reitor do Estabelecimento lhe mostrou um manuscripto, redigido em latim pelos missionários da Companhia, o qual continha o itinerário de uma expedição feita desde o Orenoco até o Prata. Nesse manuscripto encontrou o Padre Nicolino notas preciosas, especialmente a noticia da existência de extensos campos ao sul das cordilheiras de Tumu-Cumac.

      ……………….

      Oitenta dias passei em n’aquelles explendidos desertos. Parecia insensível ás fadigas, ás privações e aos perigos: e tive realmente fundo pesar quando fui forçado a regressar.

      Quanto é rica esta nossa terra! …. Quando eu descia o rio Cuminá, os práticos das minhas canoas eram dos antigos habitantes dos mocambos, que tinham em grande veneração a memória do Padre Nicolino. Dois d’esses homens, Joaquim Sant’Anna e Guilherme do Espírito Santo[3], eram dotados de nobres sentimentos… Os mocambeiros me contaram muitas vezes, os trabalhos, a agonia, e a morte do seu amigo Padre Nicolino.

      “O Padre e nós tínhamos andado muito, me diziam elles, pelo meio das mattas. Uma tarde acampamos junto á um igarape de água fria e fundo de areia.

      Jantamos. Comnosco iam cinco meninos, discípulos do Padre. Estes meninos entoaram cantigas religiosos tristes, como costumavam fazer todas as tardes. Deitamo-nos em nossas macas. O Padre nos disse: – “Com mais dois dias enconramos as aldeias dos Pianocotós. Com mais três encontramos os campos”. Mas ao amanhecer o Padre nos disse: – “Estou mal!” Passou o dia com febres. Ás 4 horas da tarde, levantou a cabeça, e disse:

  • Oh minha mãi, minha mãi!

Alguns minutos depois, um menino chegou-se á rede, olhou e disse:

  • O Padre está morto!

Os meninos começaram a chorar em altos gritos. Nós, os homens, também choramos.

Toda a noite levamos a velar para que a onça não viesse carregar o corpo. Pozemos á cabeceira uma pequena cruz que o Padre costumava trazer ao peito, e accendemos uma vela de cera de cada lado. Ao amanhecer lavamos o corpo na água fria do igarapé, e depois o enterramos em baixo de uma castanheira. Fincamos uma cruz à cabeceira da sepultura. Passamos ainda ahi trez dias, e depois regressamos. Quando ao mocambo chegou a notícia que o Padre tinha morrido, todos se recolhiam ás suas casas e choraram sem consolação.

Trez annos depois voltamos, desenterramos os ossos, e os levamos para a sua egrejinha de Uruá-Tapera.

Com effeito, os habitantes do Trombetas e de Óbidos vieram em piedosa romaria inhumar os restos mortaes do seu vigário e amigo na ermida que elle próprio havia edificado. Uma pequena pedra o cobre. Tem esta singela inscripção, se não me falha a memória:

“Aqui jaz o Padre Nicolino José de Souza. Nasceu na Villa de Faro em 10 de Agosto de 1836. Falleceu em 12 de Outubro de 1882- Lembrança de seos amigos.”[4]

Foi um bom coração e uma grande alma. Quando eu subi o Trombetas e passei por Uruá-Tapera, fui logo visitar o modesto sepulchro do ousado explorador.

Lá dorme em paz o patriota em sua ermidasinha, que se avista ao longe, branca como uma bonina que se destaca sobre o verde-escuro da floresta.”

GONÇALVES TOCANTIS

Nada como a história para desmistificar a própria história!

A seguir, leiam com amor e dedicação os três diários do Padre Nicolino.

João Bosco Almeida Coordenador de Pesquisa da Fundação Ferreira de Almeida


[1] Nesta transcrição como na dos “Diários…” será observada a fiel grafia da época, como forma de legitimar os fatos e dar aos estudiosos da língua mater a oportunidade de cotejar a evolução e dinâmicas linguísticas. N.C

[2] Esse local é onde se acha o antigo Grupo Escolar Senador Lameira Bittencourt, hoje E.E.F. M. Lameira Bittencourt.

[3] Confira-se estas com as afirmações de próprio punho do Padre, nos seus diários a seguir narrados.

[4] Compare-se a data da morte atribuída por Gonçalves Tocantis e a que consta nos ‘Diários” que informa ser o dia fatal a 8 de novembro de 1882. N.C

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