Primeira Viagem ao Cuminá Grande – parte I

DIÁRIOS[1] DE VIAGEM DO

PADRE JOSÉ NICOLINO DE SOUZA

“Deus em sua infinita sabedoria, poder e bondade tudo arranja e dispõe sempre em favor dos homens, porém muitos delles, por irreflexão desconhecendo esta verdade, argúem os actos de sua divina Providência e qualificam de imprudência, temeridade e loucura as ações daquelles, que tem Elle escolhido para, como instrumento, realizar a sua benéfica disposição. É incontestável que todo o dever do homem resume-se no amor de Deus e do próximo. Ama e faz o que quizeres diz Santo Agostinho. Assim convencidos, resolvemos a tentar o descimento dos índios do Trombetas, o Tenente Leonel e eu, porque nada há de mais agradável a Deus do que a exaltação de sua glória, que na terra occupa o primeiro lugar a salvação das suas creaturas prediletas”

Dia 25 de Novembro de 1876 (sabbado) pelas dez horas da manhã partimos do Ageréua propriedade do Sr. Tte. Leonel da Silva Fernandes comigo Pe. Vig. Em duas canoas.

Na mais possante vieram o Tenente Leonel o Pe. José Nicolino de Souza, o Filho do Tts. Manoel Marinho Fernandes o gentio Pedro, o rapaz Vicente. No Uruatapéra[2] embarcarão-se José Agostinho Leandro digo Agostinho Moisinho e João Garcia de Sena.

Em outra canoa vierão a gentia Anna Maria de Oliveira, o filhinho Manoel e o filho do Tte. De nome Francisco Marinho Fernandes, que tendo hido adiante foi por nós alcançado abaixo do lugar dito Corralinho. Já com deliciosa sensação contemplava as aprasíveis margens do maravilhoso Trombeta, suas águas cortadas por vigorosos remos mostravão em seus alvíssimos borbulhões a realidade a realidade de sua pureza. Chegamos ao Achipicá ao entrar da noite e pernoitamos em casa do ancião Pita. No dia seguinte domingo 26 pelas 7 horas do dia continuamos a nossa viagem, tendo embarcado José Agostinho Leandro e Anselmo Francº. dos Santos aquele no Achipicá e este no Lago Grande. Pelas 3 horas e meia da tarde chegámos ao repartimento: à direita segue o Cuminá e à esquerda o Rio Grande; seguimos pelo Cuminá e às 5 h. entramos  pela boca do Salgado em cuja margem tem o Tte. Leonel uma casa aonde chegamos meio hora depois das seis da tarde e pernoitamos.

Segunda-feira 27 ouviu-se o Santo Sacrifício da Missa; partiu-se a 1 hora da tarde, tendo embarcado mais Joaquim Telles de Figueiredo, Joaquim Profírio dos Santos, Antonio Carmo, José Calixto Pires e Antonio Lazaro da Silva, buscou-se o rio Cuminá e seguiu-se. Às 7 horas da noite chegou-se ao Jaruacá em casa do velho Agostinho em cujo porto pernoitou-se.

No dia seguinte 28 embarcando mais Maria de Jesus, filha do Preto Toró com uma gentia e o gentio aina menor de nome João Pedro, saímos; eram 3 e meia da tarde e pernoitou-se na praia do repartimento, acima da boca do Cabaço. Era Domingo, digo terça-feira, dia 29, quarta-feira pelas 7 horas da  manhã fomos ao Cabaço, donde comnosco veio mais o gentio Porfírio d’Assunção. Ao voltar, reunidos ao resto dos nossos companheiros pelas 2 horas da tarde já na Praia do Ianari, seguimos o nosso destino pelas 3 h. e fomos pernoitar sobre a praia denominada do Extremo no estirão grande.

Dia 30 quinta-feira as 9 hras do dia chegamos a primeira correntesa do tronco, isto é, ao princípio das cachoeiras. Um dos panoramas notáveis da Onipotência divina é sem dúvida a cachoeira! Ao ver o tronco das cachoeiras a inteligência contempla e se eleva expontaneamente ao Creador, a imaginação se exalta e um desejo de curiosidade apodera-se da vontade e o homem não se farta, não se cança de examinar os diversos aspectos, que se apresentam ao seu olhar ambicioso. As águas que naturalmente rolam sobre seus leitos sob a sua áurea cor, nas pancadas tomam a brancura da neve e rolando-se furibundas precipitam-se cheias de escumas por entre inabaláveis rochedos. Pelas 3 horas da tarde digo das 9h. do dia até as 3 da tarde tínhamos passado 4 grandes pancadas e pernoitamos junto da 5ª em uma Ilha dita das Lages. No seguinte dia sextaf. 1º de dezembro, passou-se a 5ª e até as 2h. e meia passaram-se mais 4 mais ou menos violentas e pernoitou-se na Ilha do meio defronte da Serra do mesmo nome.

No dia Sábado 2 do mês pelas 10 h. continuamos a nossa viagem e desde defronte da serra do Pandiá uma serra de figura cônica começamos a passar fortes cachoeiras, seguimos depois por terra, levaram as gentes nossas as canoas, já no numero de três, embarcaram-nos no porto da roça que se nos disse ser de Manoel Antonio, por antonomásia Ovelha, tendo passado 4 grandes bancos. Eram 2h. da tarde. Daí em diante passou-se mais 3 bancos e às 4 e meia avistamos ao longe uma grande vala, que da superfície das águas do igarapé elevara-se à altura de 30 a 40 metros mais ou menos; uma massa da brancura da neve exhalando de si fumaça, impedia que se lhe pudesse ver o abismo; suas bordas de alcantilados e medonhos rochedos faziam-nos experimentar um não sei que de prazer e de terror! O que é aquilo, bradam todos!! Mas o que é?! Aquilo que vedes, responde o Piloto: é a cachoeira que se chama Inferno, por ali não se pode passar por causa da violenta força das águas e de insondáveis abismos que aí se acham. Foi quase junto deste sublime medonho, que abordamos as 6 horas da tarde e ali pernoitamos.

No dia 3 Domingo – pelas 7 horas da manhã fomos visitados pelo súdito francês Monsieur Jule Caillat, que acompanhado somente de uma só pessoa  o brasileiro João Felippe já tinha varado[3] a sua não pequena canoa. Foi no abarracamento dele que celebrou-se o Santo Sacrificio da Missa. Oh que doce consolação! Observou-se toda a extensão da cachoeira, que se compõe de 3 bancos horríveis! O abarracamento do Mr. Jule achava-se já alem dos bancos, tendo um delicioso porto, onde tomamos aprasível banho.

Segundaf. Dia 4 do mês continuamos a nossa derrota pelas 11h. do dia, tendo pela manhã varado nossas canoas e pernoitamos em uma ilhinha a direita e abaixo da cachoeira do Cajual. Neste dia passamos 3 bancos de cachoeira.

No dia 5 terçaf. Passando algumas correntes pouco importantes viemos pernoitar em uma ilhinha de areia defronte da serra do Macaco.

No dia 6 quarta-feira pelas 6 e meia da manhã partimos e as 10h. chegamos em casa do creoulo Lautério, donde saímos a 1 hora, entramos pelo Penicoro, igarapé que se acha logo acima desta situação e fomos pernoitar no porto da tapera de Joaquim Sant’Ana.

Quinta f. dia 7 as 7 h. continuamos a nossa tarefa, não podendo chegar à tapera denominada S. Antonio ficamos em lugar acima duma tapera pertencente ao mesmo Lautério, que serviu-nos de piloto e havíamos deixado na casa do mesmo para fazermos farinha, visto termos necessidade e ter ele roça. Ficando na barraca o meu compe.[4] A. comecei as minhas pesquisas de malocas. Assim pois, neste mesmo dia pelas 2h. da tarde acompanhado da gentia Anna, da Maria de Jesus, do filho de meu compe. Francisco, de João Garcia de Sena, de Agostinho Mosinho, de Joaquim Teles, José de Paulo, do índio ou gentio Pedro, José Garcia de Souza e José da Mota – pernoitamos sobre um rochedo no meio do igarapé, ainda distante da tapera S. Antonio.

No dia 8 sexta f. viajou-se e chegou-se pelas 10 h. em S. Antonio onde por falta de mantimentos parou-se.

No dia 9 sabbado viajou-se das 7 h. da manhã às 6 h. da tarde e pernoitou-se a margem do pequeno igarapé chamado pelo gentio Ariminaiacarú (igarapé de barro).

Dia 10. Domingo saiu-se as 9 horas da manhã, às 3 da tarde encontrou-se uma choupana dos índios e abarracou-se à margem do braço direito do igarapé acima dito às 6 da tarde.

Dia 11 segunda f. pomo-nos em caminho às 6h. da manhã em busca duma serra, vista às 3 h. do dia precedente, que indicava estar roçada. Ah! Que lisongeira esperança raiou em nossos corações, já nos pareciam coroadas as nossas penas, os nossos esforços e sacrifícios, pois já se nos tinha acabado a farinha! Quanto, pois, não nos alegrou aquela serra, que ilusoriamente nos mostrava estar ali o objeto de nossas fadigas?

Chegamos à serra às 11 horas e achamos montões de medonhos rochedos que quase não permitiam vegetação alguma, por isso de longe mostrava a aparência de roçados. Que decepção! Que tristeza! Sem farinha por espaço de dias?!

Voltamos com os corações serrados, os nossos guias gemiam apenas entre dentes. Ao chegar na choupana encontrada seguimos subindo o rio encontramos cinco velhas choupanas, que indicavam se terem os índios retirado para mais longe, subindo ao Cuminá. A falta de farinha, muitos dos companheiros adoentados decidiram-nos a voltar e viemos pernoitar na margem do mesmo igarapé Ariminaiacurú. Era 1 h. da tarde quando abarracamos.

Dia 12 3ª feira saímos as 6 h. da manhã e chegamos na tapera Santo Antonio as 3 da tarde. Extenuados como estávamos pela fome paramos e buscamos nas capoeiras bananas e canas, que encontramos em quantidade. Ah! Minha cara pátria és um paraíso e por isso desgraçadamente vegetam teus filhos e não vivem!

No seguinte dia 4ª feira e 13 do mês partimos as 7 h. da manhã e as 2 da tarde abraçávamos alegres os nossos companheiros, que à excepção de um que já deixamos doente, todos gozavam saúde especialmente o Tte. Leonel. O único pezar que nos acompanhava era de não termos encontrado os índios, objeto, certo, do nosso amor.

No dia 14 – 5ª f. as 9 h. da manhã saímos do Penecuro em duas canoas cheguei com os meus companheiros em caso do creoulo Lautério à 1 h. da tarde e o Tte. Leonel as 3 e aí fixamos a nossa residência, encontrando de novo o Mr. Jules, que nos mostrou todo sob a hediondez de seus egoísmo.

Dia 15 6ª f. ali passou-se por ser chuvoso.

Dia 16 sabado, ficando na barraca o Tte. Leonel, e outros ocupados em fazer farinha, parti par o mato em busca de uma serra, junto da qual se nos disse achar-se uma maloca. Os companheiros foram Francisco, filho do Tte. A gentia Ana o gentio menor João Pedro, Agostinho Moisinho, José Agostinho Leandro, Joaquim Teles, José Garcia de Souza, Joaquim Porfírio dos Santos e o creoulo Lautério. Tendo saído da barraca as 7 horas da manha fomos pernoitar em uma baixada, bem distante da serra.

Domingo dia 17 ali passei, indo somente 4 pessoas por passeio explorar os lugares visinhos.


[1] Como obra pessoal e para ser fiel ao fato histórico nesta edição é mantida a ortografia etimológica do autor, a partir da primeira edição dos diários do Pe. Nicolino, in Publicação nº 91 do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, Ministério da Agricultura, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, ano de 1946.

[2] A primeira correção histórica a partir dos registros de que fez a viagem no ano de 1876. É corrente a versão que foi somente no segundo semestre do ano seguinte (1877) que Pe. Nicolino teria desbravado as margens esquerda do Rio Trombetas e fundado a Uruatapéra. N.A

[3] Expressão que significa “passar pela cachoeira”. N.A

[4] Abreviatura de compadre

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