Na eterna mirada do rio…

Após dois anos da súbita morte do Domingos, remanesce o sentimento de carinho e saudade para se concluir com as velhas certezas de que a morte faz parte da vida, da última parte da vida. Depois dela, só restam as homenagens que devem os vivos fazer aos seus mortos, rememorando os feitos e imaginando como seriam suas atitudes nos dias de hoje. Fico a imaginar como esse espírito irrequieto estaria enfrentando hoje a pandemia e suas sequelas, sejam naturais ou humanas. Nada lhe escapava.

Ele era o parceiro da melhor qualidade para afastar o marasmo do cotidiano seja lá de quem fosse. Seu velho pai até hoje vive o silêncio ensurdecido da vida agitada que teve com o filho mais chegado, mais amigo e companheiro da hora. Fita o rio por horas como a prescrutar uma lancha onde o filho estivesse à popa. Uma lágrima irriga a face rugosa no velho rosto ao fim da tarde, após a missa televisada de agradecimento pela alma repentinamente chamada ao Pai. A mãe ainda guarda obsequioso silêncio da partida, sem choro nem vela, nem uma fita amarela, bastando o terço e a missa para acalmar as angústias humanas. O silêncio dos pais talvez seja o grito da maior saudade do filho companheiro, do filho sempre presente, que não pedia nada em troca, que lhes levava aos passeios com alegria, que vivia o dia a dia sem contar com o futuro fatal.

A vida com Domingos era divertida, incessante, intensa e às vezes também perigosa, tanto arteiro que era no trato diário com os seus parentes e achegados. Também os forasteiros e amigos logo sabiam reconhecer um aventureiro e destemido homem dos sete negócios. Fazia e desfazia negócios com a facilidade e certeza das palavras ao vento.

Domingos deve estar a contemplar lá do alto do morro o rio que tanto navegara na bela vida que marcou na sua passagem pela terra. Na fase derradeira da sua vida ele flutuava para cima e para baixo, sempre retornando ao ponto de partida, tão logo cumprida a missão assumida na palavra. Estava sempre disponível para qualquer viagem, fosse por água, terra ou ar, não havendo negacionismo nos seus atos. Ou fazia ou inventava que fazia, mas sempre havia um resultado, no mais tardar uma bela história para contar aos parceiros, sua família que tanto sente sua falta, que ainda não entendeu o vazio deixado naquela fatídica madrugada.

Sendo uma alma vigilante e agitada, achando que essas qualidades são eternas, fico a imaginar o Domingos aprontando mais uma das suas variadas maquinações, bem debaixo da mangueira onde jaz a paz eterna. Deve estar indagando onde andará o pai dele, que tantas preocupações lhe prestou ou quem dos irmãos estaria levando os velhos pais para um belo passeio pelo Trombetas, indo até o Sacuri pegar castanhas?

Alma inquieta, nunca estava conformado! Sempre desafiava a mesmice do dia a dia, inventando um jeito novo para fazer as coisas, ainda que não convencionais para a maioria, mas nunca vi nele um acomodado às vicissitudes da vida moderna. Não é porque partistes que desaparecestes da vida da gente, ao contrário, ficastes mais presente por muito tempo… até que sejam realizadas as exéquias literárias, as derradeiras homenagens daqueles que o seguiram até o túmulo.

Fique em paz meu irmão, enquanto houver letras sob meus dedos escreverei palavras para lembrar sua memória!

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