Rio das Trombetas

(Trechos de abertura do 5º livro de João Bosco Almeida)         

       

            A peça exige um lugar onde se faz acontecer os fatos, palco das emoções, razão das disputas etc. . E já no início encontramos holandeses, franceses e ingleses  comerciando com os índios na boca do Trombetas, ensinando a eles essa milenar arte de levar vantagem.

            Mas, começa também com uma fantasia pura, como diria Gastão Cruls, em Amazônia que eu vi, se referindo ao Padre Nicolino.[1]  Na cena da cupidez humana o padre vigário teria sido alvo fácil. O escritor de bordo do Marechal Rondon nos diz do espanto e dúvida que se apoderou de sua alma, ao saber da crença da capela dourada descoberta pelo Padre Nicolino. Teria o religioso, nosso herói oriximinaense, realmente mascarado seus propósitos da catequese indígena para partir em busca do vil metal?                  

            Se tinha uma coisa que me intrigava desde menino, ainda no tempo da professora Zezé [2], era aquela história que se repetia todo ano no “Programa da Festa de Santo Antônio”, sobre as origens de Oriximiná. Era um tal de roçado no araçazal que esvoaçavam abelhas e zangão para acabar nas minas de praia que não tinha fim… “…foi no ano de 1977 que Padre Nicolino, desembarcou com seus fiéis e fez um grande roçado na praia abarrotada de araçazais… o topônimo significa o macho da abelha… e na corruptela das minas de praia……”  A velha e nova mania de dar significado a tudo e a todos.

            Não dava para ser mais original, trocar o parágrafo, inverter o período…??? todo ano era a mesma coisa… Mas, o que me incomodava era que parecia que Padre Nicolino não tinha muito o que fazer, pegava uns paroquianos em Óbidos e partia para o Rio Trombetas. Depois de remar cerca de 4 horas, avistava aquela praia de araçazal e mandava todo mundo descer, faziam o roçado e depois rezava a missa… Bem ao estilo do que nós engolimos a história do Brasil. Era preciso ousar mais. Os fatos exigiam explicação… o resultado de toda essa descoberta estava ali, bem presente, na frente de todos: a cidade, a gente, a economia que pulsava, o poder funcionava, removia tudo…a separação do estado, com a criação do Estado do Tapajós.

            Voltando àquele passado significante, Cruls registra que “diziam mesmo que as viagens do Padre Nicolino, que por três vezes se abalançou por águas do Cuminá, traiam o incentivo oculto de procurar tais riquezas. De tudo isso me ficou, porém, uma pálida e confusa idéia, tão vagas e fragmentárias eram as alusões que se me fizeram a respeito. Mas o assunto me interessava e a ele voltei mais tarde.

            Por bondade de um amigo, tive então sob os olhos, satisfazendo-me plenamente a curiosidade, certo artigo do Sr. José Carvalho, sob o título O Padre Nicolino e a sua lenda, publicado há alguns anos na Folha do Norte. Diz o autor, reportando-se à tradição, que o padre tivera notícias dos tesouros do Cuminá, quando no seminário europeu, lera o tal roteiro a que já aludimos e que se referia ao Brasil. Em nota do próprio punho, aditada à cópia do seu artigo, que nos foi enviada de Belém, o Sr. José Carvalho teve a gentileza de esclarecer que esse tesouro, quiçá existente na bacia do Cuminá, teria sido ali abandonado ao tempo em que alguns jesuítas, residentes em Belém, à sua ordem de expulsão do Brasil, procuravam ganhar por terra as Guianas Holandesas, partido de Óbidos e levando consigo as suas riquezas. Se as dificuldades de tão longa e rude travessia forçaram-nos ao alijamento de tão preciosa carga, viera-lhes o cuidado de traçar um roteiro da sua viagem, justamente aquele que, muitos anos mais tarde, cairia entre as mãos do Padre Nicolino. Quer ainda a fábula que o Padre, da sua terceira investida por águas do Cuminá, haja finalmente encontrado o tesouro. A sua descoberta ter-lhe-ia custado a vida. De tudo o que se amontoava ali em ouro, prata e outras preciosidades, emanavam vapores asfixiantes e gases deletérios que em pouco lhe foram fatais.

            Era o eldorado imaginado pelos contemporâneos do Padre Nicolino. Entre a morte do religioso nas serras de Urucuiucana, no tronco de uma castanheira, e a publicação do artigo em Belém no ano de 1920, foi construída uma lenda, estimulada pela Igreja, claro. Havia muito interesse, como há, de se criar heróis… principalmente os mártires, aqueles que morrem por uma causa. E no nosso caso a causa ainda pode estar perdida… 

            Mas, voltemos ao palco do teatro Oriximiná. A cultura konduri, que resolvemos cognominar é aquela que resulta da mesclagem desses sangues e suores ao longo dos anos. No início, era a terra…quer dizer, eram os rios…

            Assim como hoje a Amazônia é identificada pela floresta que tem, naquela época, os lugares eram conhecidos pelos rios. Eram mapeados os rios e as nações indígenas, se buscando registrar os nomes de acordo as características mais marcantes, como as trombetas que os habitantes do rio Uraxamina[3] usavam para se comunicar, fez originar o nome de Rio das Trombetas, hoje somente Rio Trombetas.

            No século XVIII, é Mauricio de Heriarte, provedor-mor e auditor do governador D. Pedro de Mello, que nos informa quem já estava por aqui na chegada dos europeus. No livro Descripções do Estado do Maranhão e do Rio das Amazonas , estão as primeiras informações etnográficas, dizendo ser o rio “mui povoado de índios de diferentes nações, como são Conduris, Bobuis, Aroaes, Tabaos, Curiatos e outros muitos; e todos tem os próprios ídolos, cerimônias e governo que tem os Tapajós… as terras destes rio das Trombetas (que os Portugueses lhe deram este nome pelas muitas trombetas de que seus moradores usam para se comunicar) tem finíssimo barro, de que fazem muito e boa louça de toda a sorte, que entre os Portugueses he de estima, e a levam a outras províncias por contrato”[4].

            Para situar melhor o leitor nesta viagem, vamos ver o que acontecia naquele malfado período da nossa história; ou melhor, daquilo que seria formação do lugar e gente que criou Oriximiná. Assim é que José Ubiratan do Rosário[5] afirma que “ ninguém, jamais, poderá inteirar-se da civilização que se recriou na Amazônia sem antes considerar o elenco universal de agonias e glórias do século XVIII…” . Foi nessa época que esteve no cadinho os principais componentes que resultou na gente de agora.

Rosário continua dizendo “… a noção de direito era talvez a mais deplorável de todas as noções que, como elemento cultural, entraram nas duas capitanias lusitanas. No Brasil, Vice-Reino ou dos Vice-Reis praticava-se tudo aquilo que fora condenado pelo Marquês de Beccaria[6]: a tortura durante os interrogatórios, a bola pesada de ferro atada no pé do condenado, tudo isso dentro dos ergástulos escuros onde não penetrava a luz do sol”.

Mas é quanto à formação da gente que nos interessa neste momento, e era nessa época que ocorria a maior tragédia dos povos das florestas, principalmente os índios. Foram dizimadas populações inteiras de nações indígenas, através do uso de bombardeios e fuzilaria das tropas do Rei de Portugal. A ordem era vencer a insurreição pelos chefes rebeldes, principalmente Ajuricaba.

Em 1723, segundo Rosário, o militar português Henrique João Wilkens, escreveu um poema épico denominado A Muhraida, que registra a façanha belicista procurando justificar o genocídio amazônico[7].

A revelação da derrota dos Muhra no Amazonas na literatura, condenava a ferocidade dos guerreiros nativos que resistiam à denominação dos brancos. Diz o escritor Márcio Souza que “quando o remédio do salvacionismo cristão não surtia efeito, a pólvora dos arcabuzes abria uma perspectiva”.[8]

Era essa a terra mãe gentil que viu desaparecer mais de 15 mil índios no rio Urubu, mais 20 mil no alto Amazonas. E no então rio das Trombetas?

É dentro desse processo de descaracterização da cultura primitiva e no entrecruzamento étnico, com o luso gerando macroetnia, que emerge o povo amazônico no extremo norte brasileiro, recriando a civilização que os portugueses transplantaram.[9]

Ainda sobre as regras legais, proibia-se na Amazônia que Marquês de Pombal dava as ordens, o casamento ou mero cruzamento de branco com negro, mas estimulava-se, inclusive com estímulos pelo Estado, o cruzamento de branco com nativa, até premiando-se os casais híbridos que tivesse mais filhos.

E assim, nós temos o cenário que vai se abrir para os novos atores que farão uma peça especial na região entre a cidade de Óbidos e Faro, às margens do rio das Trombetas, na outra foz do Nhumundá.


[1] Gastão Cruls, escritor carioca que acompanhou o Marechal Rondon, em 1925 quando subiu o rio Cuminá, no trabalho de demarcação das fronteiras ao norte do Brasil.

[2] Professora Maria José Bentes Sarubi, no ano de 1969 a 1970, no Grupo Escolar Senador Lameira Bittencourt.

[3] Até o momento este é nome mais antigo que era conhecido o Rio Trombetas. Está grafado num mapa do ano de 1796, onde aparece a região dos Omáguas, Apantos e Cunurizes, na Comissão Brasileira Demarcadora de Limites, Belém, PA.

[4] Apud Peter Paul Hilbert, in A Cerâmica Arqueológica de Oriximiná, 1955, Belém, Pará.

[5] José Ubiratan do Rosário, in Amazônia, Processo Civilizatório e Apogeu do Grão Pará, Belém, 1986, pág. 8

[6] Marquês de Beccaria, filósofo italiano que escreveu Dei delitti e delle Pene, um basta na tortura praticada na época através da moderação das penas (nulla poena sine legi)

[7] Rosário, ob. Cit. Pág. 9

[8] Márcio Souza, in A Expressão Amazonense. Do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo, Alfa-Omega, 1978

[9] José Ubiratan do Rosário, ob. Citada, pág. 124

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