Arquivo mensal: Janeiro 2021

MERCOTROM – Integrar para não ver navio passar

O espírito irrequieto dos Konduris sopra o vento hamelletiano para por em xeque a estratégia política de Oriximiná e seus arredores, na egoística e suicida política de desenvolvimento isolado, ignorando a vizinhança, quase sempre ofuscada pelos efêmeros recursos de um subsolo que se esgota.

A região do Trombetas sustenta com suas entranhas a 4ª maior empresa paraense que desenvolve suas atividades em Porto Trombetas de costas para seus pacatos hospedeiros, que não conseguem fechar contratos comerciais regulares, porque diante de seu pequeno balcão, nem se habilitam no emaranhado de exigências nas licitações.

Com uma gestão otimizada para o lucro, a Mineração Rio do Norte – MRN, não pode cuidar da pobreza que atraiu no passado e fomenta no presente, posto que de somenos importância nas sua gestão e visão empresarial, dando-se ao luxo de enterrar, literalmente, recursos florestais da ordem de R$ 80mil mensais, retirados no processo de decapagem florestal da ordem de 20 hectares por mês. Tudo isso porque seu principal negócio é extrair e processar a bauxita, e a floresta está lá atrapalhando.

Daí porque, não há muita cerimônia em fazer desaparecer como adubo a grande obra da natureza que é uma árvore.

De Juruti a Monte Alegre, pelo menos, há um arco de pobreza e miséria estendido pela ineficiência de fazer a MRN praticar critérios de cidadania e responsabilidade pública para com a vizinhança, com a flecha da insegurança no futuro apontada para o desastre que aconteceu na região aurífera do Tapajós, poucos anos atrás, e no buraco lunar que ficou no Amapá, poucas décadas passadas.

Limitados por fatores técnicos de concorrência empresarial, observa-se a inexistência de nenhuma empresa desses oito municípios vizinhos no fornecimento regular de quaisquer que sejam os produtos, até mesmo do setor primário. Há sempre o critério da continuidade do fornecimento que se esgota na capacidade de se auto-organizar os empresariado, as lideranças políticas etc. . .

Assim, fadados às migalhas dos repasses tributários, nada há mais para fomentar o investimento regional, além das míseras participações tributárias, e outras não menos ínfimas verbas de projetos especiais do governo estadual. Não há políticas públicas definidas para a área que contemplem a continuação das atividades produtivas, talvez porque não haveria representatividade parlamentar eficiente para tanto; Talvez porque não haveria voz suficiente para gritar o grito da região, que está quase acostumada a ver o navio passar, seja em Juruti, seja em Oriximiná, seja em Óbidos, Curuá ou Monte Alegre…Eis que nem todas as folhas da florestas foram queimadas…. há que renascer sempre a necessidade como mãe das invenções.

Nesse sentido, Oriximiná, ora a base principal das receitas excedentes dos impostos, poderia liderar uma gestão empresarial, via poder público, para que se organize, passo a passo, um grande mercado na área de influência da MRN. Algo como o Mercado Comum para o Trombetas – MERCOTROM, no sentido de se criar protocolos e gestão empresarial para exigir uma negociação em bloco com a MRN com vistas a capacitação das empresas de cada município de acordo com cada vocação de produção que tiver.

O diferencial financeiro excedente de Oriximiná poderia financiar tal agrupamento de interesses comerciais que apoiados pelos órgãos de capacitação como SEBRAE e Associações Comerciais, motivassem os empresários desses municípios a participarem com vigor na tentativa de absorver, pelo menos 10% das centenas de milhões de dólares que estão sendo investidos nos próximos dois anos.

Para fazer é só começar…

(artigo do advogado João Bosco Almeida, publicado na revista virtual www.belemdopara.com.br  em 04.12.2000)

Porque não esperar pelo Estado

            Frente à imensidão amazônica tudo é possível. Até mesmo ficar séculos e séculos esperando pelas ações daqueles que vêem de longe. Espaço não falta para abrigar a comodidade, o não saber fazer, a melhor desculpa e muito menos tempo e lerdeza do bom e aconchegante clima invariável ao longo dos tempos.

            Dessa maneira, fica tudo como está para ver como é que vai ficar! Essa é a razão da insatisfação atual! A globalização atualizou tudo, zerou a lerdeza e instigou o incômodo ato de pensar…

            Nos livros é possível encontrar algumas justificações para esse tipo de mobilidade para ação positiva na região do vale do Trombetas. Tirando a poeira de A Política, do grego Aristóteles, de Thomas Hobbes¸ do italiano Norberto Bobbio e outros mais, é possível pensar um pouco em busca das razões antes da ação para depois da inação do Estado nacional, estadual ou municipal[1].

            Instado a apresentar a condição científica da proposta do MERCOTROM recorre-se à teoria do estado moderno em suas várias acepções até nossos dias. As mesmas que formataram as grandes entidades políticas de agora, organizando e legitimando as instituições duradouras da civilização ocidental, como a família, a escola, o direito, o estado nacional, a política etc..

            O ponto de partida de análise da origem e do fundamento do Estado é definir sua natureza, ou seja, se um estado não político ou anti-político. [2] Evoluindo de uma idéia inicial onde havia tal dicotomia, aceitando o surgimento de outros modelos, é proposto um modelo alternativo que justificasse a legitimação de um poder estatal. Tal é para satisfação daqueles que exigem a condição “oficial” para dizer uma proposta de estratégia política e econômica como o MERCOTROM.

            Ainda restam vários modelos para se escolher como  aquele que justifica a interferência de um poder externo na região. Adota-se o modelo alternativo para clarear as idéias dos mais exigentes. La construción de um modelo alternativo y la subsunción en él de una realidad diversa y múltiple puede parecer una operación arbitraria y estéril. Considero que en este caso la legitimidad (y también la utilidad) de la operación podría quedar demostrada sobre la base de la constatación de que la filosofía política anterior a la del iusnaturalismo h acogido y transmitido sin diferencias perceptibles de un autor a otro un modelo completamente distinto, y opuesto en casi todos los aspectos. Se trata del modelo al que por su autor se puede llamar “aristotélico”. En las primeras páginas de la POLÍTICA Aristóteles explica el origen del Estado en tantos que polis o ciudad, a partir de la familia y siguiendo a través de la formación intermedia de la aldea. Dicho con sus mismas palabras:

La comunidad que se constituye para la vida de todos los días es por naturaleza la familia […]. La primera comunidad, que deriva de la unión de más familias desarrollada para satisfacer una necesidad no estrictamente diaria es la aldea[…]. La comunidad perfecta de aldeas constituye ya la ciudad, que ha alcanzado lo que se llama un nivel de autosuficiencia y que surge para hacer posible la vida y que subsiste para producir las condiciones de una buena existencia (1252a)

            Resultan sorprendentes la duración, la continuidad, la estabilidad, la vitalidad de que ha dado pruebas a lo largo de los siglos esta forma de concebir el origen del Estado.[3]

            Todo esse espanhol serve para reafirmar uma certeza tão presente nos filósofos nativos da Kondurilândia que às vezes nem se dão conta: quem tem que fazer as coisas acontecerem mesmo na sociedade civil são as mesmas pessoas que acordam, vão ao trabalho e retornam para uma mesa comum de alimentação e voltam a dormir na mesma localidade, ou seja, os oriximinaenses, ao menos.

            São aquelas pessoas conscientes de que aquele Estado não existe se eles não emprestarem uma hora por dia de sua labuta para fazer e organizar sua rua, seu bairro, sua cidade, sua região e nação. Está na família, seja natural de pai e mãe, seja de amigos, de interesses comuns, de negócios ou outros lícitos motivos. Mas, família, com unidade e sentimentos próprios dos seus membros integrantes que partilham as mesmas regras de convivência.

            E assim, não se poderiam esperar pelo Estado para resolver aqueles problemas que estão postos desde sempre. Ainda mais, o Estado existe e está presente, mas, tentou abarcar tantas questões que não se sustenta hoje em dia a menos que busque o apoio na sociedade.

            Para a doutora em Antropologia Ligia T. L. Simonian (UFPA-NAEA)[4], as políticas públicas para a questão mineral na Amazônia faliram e não são mais possíveis sua realização na forma concebida, o que aliás, devem constituir objetos de amplos debates na sociedade civil.

            Antes de tratar essa questão da falência das políticas públicas, cumpre revisar um conceito histórico de como se deve encarar os problemas sociais e a causa das origens dos fato social e conseqüentemente do fato histórico, afinal, também das causas devemos tratar na busca de soluções para qualquer problema social.

            Pouco difundido no Brasil, o russo Guiorgui Valentinóvitch Plekhanov, ensina que “…quando o historiador não é daqueles que se privaram do dom de generalizar e pode abarcar com o pensamento o passado e o presente do gênero humano, vê desenrolar-se um grande e maravilhoso espetáculo”[5]. Assim, a História deve ser considerada como ciência que não se contenta em aprender como se passaram as coisas, mas que quer saber por que se passaram de tal maneira e não de outra qualquer.[6]

            A propósito desta discussão trombetana é preciso contextualizar o pensador alemão Karl Marx para quem em minhas pesquisas conduziram a este resultado: que as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser compreendidas por si próprias, nem pela pretensa evolução geral do espírito humano, mas, ao contrário, deitam suas raízes nas condições materiais de existência, cujo conjunto Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende sob o nome de “sociedade civil”.[7]

            Mais queremos ao mostrar a urgência do processo histórico, ou melhor, do momento histórico experimentado pela sociedade oriximinaense e dos arredores do vale do Rio Trombetas face às forças produtivas presentes e atuantes.

            Ao perguntar quais são as causas determinantes da sociedade civil,  Marx vai mais longe e responde que é na economia política que devemos buscar a anatomia da sociedade civil. Como o caso daquele legista trombetano que Caco Konduri poetizou[8], vamos por parte. Diz-nos o russo Plekhanov, que é o estado econômico de um povo que determina seu estado social, e o estado social de um povo determina, por sua vez, seu estado político, religioso e assim sucessivamente. Mas, perguntareis, o estado econômico não tem causa, por sua vez? Sem dúvida, como todas as coisas do mundo, tem sua causa, e esta causa, causa fundamental de toda evolução social e, portanto, de todo movimento histórico, é a luta que o homem trava com a natureza para assegurar sua própria existência. Desejo ler-vos o que Marx diz a respeito: [9]

            “Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um dado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que lhes determina o ser; ao contrário, seu ser social determina sua consciência. Em um certo estado de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que a expressão jurídica disso, com as relações de propriedade no sei das quais se haviam movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações transformaram-se em seus entraves. Abre-se então uma época de revolução social. A mudança na base econômica subverte mais ou menos lentamente, mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura. Quando consideramos tais subversões, é preciso distinguir sempre a revolução material que pode ser constatada de modo cientificamente rigoroso – das condições de produção econômica e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, as formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência deste conflito e o levam até o fim. Da mesma maneira que não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se deve julgar tal época de subversão por sua consciência de si mesma; ao contrário, é preciso explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma formação social só desaparece depois de se terem desenvolvido todas as forças produtivas que ela pode conter, jamais novas e superiores relações de produção a substituem antes que as condições materiais de existência destas relações tenham eclodido no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não formula jamais senão problemas que pode resolver, porque, se olharmos mais de perto, vemos sempre que o próprio problema só surge onde as condições materiais para resolve-lo existem ou, pelo menos, estão em vias de aparecer.”[10]

            Que tipo de sociedade temos no vale do rio Trombetas? Do tipo caçadora, pastoril, agricultura, industrial ou comercial, de serviços ou de cidadania? Essa é a resposta que precisamos dizer no trato dos conflitos latentes de lado a lado. Não se deve cultivar a litigiosidade contida no fosso trombetano. Há que se criar agendas positivas de cunho social para reduzir esse passivo herdado pelas gerações anteriores. Afinal, a economia política determina a consciência regional…

*

            Agora a questão da falência das políticas públicas no vale do rio Trombetas. Evoluindo dos pedidos simplórios de “tambores e foguetes” a sociedade política de Oriximiná conseguiu dar saltos  históricos nessa questão, vez que hoje, já sustenta debates e fórum políticos e, em alguns casos, uma discussão social para os  problemas locais, não sem entremeios de pedidos absurdos de alguns vereadores provincianos, que ao verem a platéia cheia, não se intimidam em “pedir” esmolas para a MRN, mesmo sabendo que a resposta vai ser um sonoro não, ou pior, algo do tipo “ponha tudo isso no papel e encaminhe para nossa diretoria…”.

            Ligia Simonian[11], diz que ultimamente, tanto as políticas como as ações do Estado voltadas para a constituição de áreas de reserva … e para a sustentabilidade dos recursos naturais têm sido pautadas  por perspectivas dominantemente negativas.  Esclarece porque a partir de 1970 essas áreas foram adredemente criadas no país, especialmente para proteger grandes projetos mineradores.

            No que diz respeito às reservas, a partir de suas diversas esferas, o Estado propõe e implementa políticas sobre essa áreas, mas raramente atende a critérios científicos, ou mesmo aos interesses das populações locais. Em face de tal postura, na Amazônia, a sustentabilidade dos recursos naturais é dificultada e criam-se condições para que mobilizações e movimentos sociais ocorram em resposta.  Registre-se os problemas sérios causados aos ribeirinhos do Trombetas a quando da criação da REBIO do TROMBETAS e sua manutenção até os dias presentes.

            Ligia Simoniam, afirma ainda que… na REBIO do GUAPORÉ, várias comunidades de caboclos foram compulsoriamente transferidas e ainda sofreram toda sorte de intimidação e violência… Como na REBIO do GUAPORÉ, no Trombetas, e em tantas outras áreas de reserva, mesmo recentemente, essas populações sofreram toda sorte de intimidação. Em face de tal desdobramento, as resistências são muitas quanto ao processo de implantação da FLONA, tendo sido grandes os questionamentos acerca do modo como foi feita a licitação pública pela sua Coordenação, a qual privilegiou a participação de empresas em detrimento de possíveis interesses das próprias populações e/ou associações locais.[12]

A REBIO do TROMBETAS assim também a FLONA SARACÁ-TAQUERA até o presente momento não apresentam nenhum estudo científico que lhe justificasse a criação, que não seja diferente da proteção da área para a mineradora. Vale dizer, que até hoje há conflito agrário[13] face ao pouco zelo e participação da sociedade na sua criação nos anos do autoritarismo.

 A memória da população de Oriximiná é fértil quanto ao problema das “tartarugas do Trombetas”, de como os ribeirinhos foram expulsos de suas terras nativas e dos castanhais, mesmo que não tituladas, mas secularmente possuídas por eles mesmos, chegando até serem consideradas bens de valor econômico essencial para a economia do Pará, como se vê do depoimento de Silvio Meira, em Conferência pronunciada no IV Encontro Interregional de Cientistas Sociais, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, em Manaus, no dia 13 de Novembro de 1966, para quem comentando os feitos do revolucionário Magalhães Barata na segunda república brasileira,  “…a criação da Inspetoria de Minas e Castanhais pelo Decreto nº 416, de 10.07.31, equiparava os castanhais às minas de ouro, para efeito do patrimônio do Estado. A castanha era assim o ouro vegetal, que gerava riquezas fabulosas e permitia o controle do poder, com todas as suas conseqüências”[14].

            Aliás, não precisa ser morador de Oriximiná para saber como os castanhais foram elemento impulsionador da economia trombetana e também registrar a decadência dessa atividade de coletores de castanhas a partir da criação da “reserva” e toda a truculência que incidiu sobre os ribeirinhos, pescadores, coletores…

Pior do que não servir à sociedade, em gritante ofensa ao princípio constitucional da função social da propriedade, o estado acabou criando verdadeiros latifúndios na região do vale do rio Trombetas. Ainda neste tema a inutilidade social da Floresta Nacional do Saracá-Taquera, que com seus 425 mil hectares, protege as minas e veda o acesso das populações dos lagos marginais, como ficou presente nas últimas audiências públicas em Oriximiná quando foram preciso, pelo menos, duas reuniões para divulgação do EIA-RIMA[15] para a nova área de atividade já iniciada no ano de 2002.

Registre-se que o vale do Saracazinho já foi um grande centro de produção e escoamento de castanha-do-Pará no passado, hoje fora do mercado extrativo em razão de se incluir no arco de proteção da FLONA Saracá-Taquera, e sem estudos de manejo florestal nem sequer iniciado por qualquer das partes envolvidas. Não é proibido a extração das espécies florestais em áreas de reservas. O que a legislação exige é um estudo prévio, fazendo-se o completo inventário da área para então autorizar a exploração via manejo racional dos recursos. A questão é o acesso da população à esse tipo de informação e procedimento uma vez que os órgãos ambientais que poderiam prestar esse tipo de serviço à população está inserido na urbana da Vila de Porto Trombetas, dificultando o acesso de quem quer que seja.

Imaginem, apenas para os leitores da região, o que significa um ribeirinho que queira, por exemplo, extrair açaí em suas terras e ficar “dentro da lei”, como diz a propaganda institucional do IBAMA, “fique legal”. Teria que dar uma volta no rio Trombetas e acessar a Vila de Porto Trombetas distante, pelo menos, cerca de 4 horas do Sapucuá, e ainda solicitar autorização para “subir” como dizem os ribeirinhos da região. Ou seja, se a gerência da FLONA SARACA estivesse na sede do município, não há duvidas que todos os interessados, inclusive o ribeirinho do Sapucuá, poderia dispor livremente dos serviços públicos do IBAMA, sem precisar entrar ou pedir permissão para ter esse direito constitucional que funciona “dentro de uma empresa particular, lá na Vila de Porto Trombetas”.

            Mas é outra pesquisadora do NAEA que nos fornece elementos de discussão mais aclarados que permitem melhores questionamentos, inclusive quanto à não participação de Oriximiná e arredores no Fundo para o Desenvolvimento Regional com Recursos da Desestatização/FRD, de R$ 200,9 milhões, a ser administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social/BNDES.[16]

            Diz-nos Maria C Coelho que entre os projetos de maior capacidade de atração de investimentos estrangeiros e união com o capital nacional, destacam-se a Mineração Rio do Norte/MRN e Albras-Alunorte… Em março de 1996, a CVRD foi privatizada. A CVRD privatizada possui uma certa independência dos estados e dos lugares onde atua. A nova política da empresa não primou, pelo menos noos primeiros dois anos de sua privatização, por uma política de estreitamento das relações entre empresas e estados. Por exemplo, o que está por trás das recusas ao projeto de verticalização da produção do cobre do Salobo?…. O poder de barganha dos estados e dos municípios nas negociações com a CVRD estatal foi sempre reduzido. Às vésperas de sua privatização, por pressões dos governos estaduais, ela destinou 8% de seu lucro líquido anual à aplicação em projetos sociais nos municípios da área de sua influência. A relação CVRD como o desenvolvimento destes municípios deixou de existir como obrigação. Como forma de compensação, foi criado o FRD.

            Assim está o vale do Rio Trombetas sendo questionado na academia quase sempre em busca das soluções técnicas à luz da ciência e do bom senso. Ainda é preciso transcrever  acerca do FRD da CVRD, que do valor total de R$ 200,9 milhões, R$ 85,9 milhões são oriundos do patrimônio da ex-estatal (o equivalente ao estoque de investimentos da CVRD no setor social) e o restante do orçamento do banco. A cada balanço anual da CVRD, uma parcela do FDR deveria ser liberada.

            Confesso que tenho arquivado os balanços anuais da MRN mas em nenhum deles assim também em nenhuma das palestras que já ouvi sobre suas ações sociais nos arredores de Oriximiná, pude saber de algum projeto que tenha sido financiado ou gestado através do FDR.

            Talvez por essas razões é que o povo de Oriximiná não reconhece a MRN como empresa de sua cidade como ficou registrado em recente pesquisa patrocinada pela mineradora, até porque insiste em portar nos seus papéis oficiais o termo Porto Trombetas em substituição ao nome da sede do município.           

            Para não cometer heresia social, ainda nos cumpre transcrever para este ensaio a visão conclusiva de Ligia T. Simonian, para quem “…investigar, identificar e analisar as problemáticas das políticas públicas, do desenvolvimento sustentável e recursos naturais, principalmente em áreas de reserva, são questões por demais complexas. Por sua vez, esta complexidade é excepcional quando aquelas questões se realizam em contextos do trópico úmido como a Amazônia. Nesta região, não só os abusos têm sido uma constante desde os tempos coloniais, como nos últimos anos eles têm sido disseminados. […] Por si só uma tal tendência demonstra a força de modos de pensar, das ações e das resistências a um projeto voltado para as políticas públicas democráticas e que possam respeitar as condições de sustentabilidade do ambiente e dos mais diversos recursos naturais. Uma tal perpectiva, minimamente, implica respeito, proteção e conservação da biodiversidade, notadamente quando se trata de áreas de reserva.”[17]

            Então fica a proposta do debate democrático para as melhores soluções de interfaciar com o meio ambiente. Veja-se a questão da água do rio Trombetas. Para escoar a produção de 16 milhões de toneladas de bauxita por ano, são necessários, segundo se divulga na imprensa e nos folders da mineradora, o transito de cerca de 300 navios rio abaixo, rio acima, no Trombetas, quase chegando à média diária de um navio por dia, que manuseia a água em suas necessidades normais; somem-se a isso os quase dez mil barcos, ou motores, como popularmente denominamos o mais popular meio de transporte da região que usa e manuseia a mesma  água, sem contudo receber outra coisa senão dejetos humanos, óleo, resíduos industriais e navais. Como os órgãos ambientais estão se preparando para mais essa investida nos recursos naturais e como a sociedade vai tratar a questão senão através de seminários, ambientações com o problema, etc etc etc

            Continuando com o pessoal do NAEA, Lígia Simonian afirma que “…As possibilidades de resistência às políticas públicas autoritárias, que asseguram o manejo negativo e conseqüentemente buscam viabilizar as áreas de reserva, igualmente aproximam vontades, realidades e destinos humanos. Não é de estranhar,  pois, que muitas propostas voltadas às políticas públicas, ao desenvolvimento sustentável e à conservação da biodiversidade vê sendo concebidas, sugeridas e/ou implementadas de modo democrático a partir de pesquisas, e por isso podem eventualmente se tornar eficazes.[…] Porém, como tais instâncias são muitas e não raro contraditórias, muito ainda há para analisar, concluir e propor, sem que isto implique necessariamente a imposição de um único modelo de políticas públicas, de sustentabilidade do desenvolvimento e de conservação dos recursos naturais. De fato, muito pouco, para não dizer  nada, tem sido encontrado a respeito. Possivelmente o grau de politização em que tais questões são envolvidas tem restringido as possibilidades de sucesso de experimentos alternativos. Por sua vez, tantas são as tensões e limites impostos aos grupos e comunidades específicas quando buscam experimentar o que se propõe como alternativa, que tais dificuldades tendem a se disseminar”.[18]

            E finalmente, “…Neste ponto, a necessidade do debate se impõe tanto no âmbito da academia e do Estado quanto da sociedade civil, pois muitos são os pontos críticos acerca das políticas públicas, do desenvolvimento sustentável e dos recursos naturais em áreas de reservas. A persistência desta problemática e a necessidade de maior discussão coloca-se ainda como da maior importância em se tratando da Amazônia, uma área riquíssima em biodiversidade e em diversidade cultural. Em que medida a permissão de exploração mineral recentemente aprovada no Senado[19] constituir-se-á em óbice a um maior equilíbrio entre a sociedade e a natureza, é uma questão ainda sem resposta, embora pelas experiências anteriores seja muito provável que o desequilíbrio se imporá. Também outras questões se impõem, como a quase inexistência de fiscalização, a lentidão na apuração dos crimes ambientais, a capacitação crítica das assessorias, o problemático patamar educacional-formal das populações tradicionais e suas dificuldades para a obtenção de recursos que possam consolidar o manejo positivo dos recursos.”[20]

            Como se vê, compete à urbe trombetana a tarefa de propor as necessárias modificações e implementações de uma nova política ambiental para as áreas de reservas que entornam a região do vale do Rio Trombetas e que delas se beneficie toda a sociedade.

(capítulo do livro Trombetas, de João Bosco Almeida)


[1] O termo Estado é usado aqui na concepção de ente político. N A

[2] El modelo Iusnaturalista, in Thomas Hobbes, Norberto Bobbio,Fondo de Cultura Econômica, México, 1995, p.15

[3] Norberto Bobbio in Thomas Hobbes, ob. Citada, p. 18

[4] Antropóloga, Doutora em Antropologia pela Universidade da Cidade de Nova Iorque, EUA, pesquisadora e professora adjunta do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA-UFPA. Tem pesquisado e publicado sobre políticas de terras indígenas no Sul do Brasil e na Amazônia.

[5] G. Plekhanov, in A concepção Materialista da História.Editorial Vitória, Biblioteca da Nova Cultura, Vol III,Rio de Janeiro, 1956

[6] Obra citada, pág. 12

[7] Apud Karl Marx, in Construção à Critica da Economia Política, tradução francesa de Leon Rémy, págs. III-IV

[8] Fosso Trombetano, de Caco Konduri, publicação recente do poeta oriximinaense que trata da desintegração social no vale do Trombetas. N A

[9] G. Plekhanov, pág. 43

[10] Ob. citada, pág. 44

[11] ob. citada, idem, idem.

[12] Ligia Simonian, obra citada, pág. 27

[13] Há pelo menos dois processos judiciais na Justiça Federal que tratam da titularidade de terras na área do Bacabal, no coração da REBIO do Trombetas. N A

[14] Silvio Meira, in Temas de Direito Civil e Agrário, CEJUP, 1986, pág. 86

[15] Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental – Inspirado no direito norte-americano (National Environmental Plicy Act/NEPA – de 1969), o EIA foi introduzido no direito positivo brasileiro pela Lei nº 6.803/80, que dispõe sobre as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição”. O EIA constituirá o RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) o qual deve refletir as conclusões do EIA. O objetivo do RIMA é comunicar os resultados alcançados no EIA à população, de modo que ela possa conhecer as vantagens e eventuais desvantagens do empreendimento, bem como as conseqüências ambientais de sua implantação (Resolução do CONAMA nº 001/1986, art. 9º e parágrafo único). Muitas vezes, mesmo em textos especializados há uma certa confusão entre EIA e RIMA. Trata-se, na verdade, de duas entidades distintas de um mesmo  documento. 

[16] apud Maria C. N .Coelho, in Política e Gestão Ambiental (Des)Integrada dos Recursos Minerais na Amazônia Oriental, pág. 145

[17] Obra citada, pág. 39

[18] obra citada, pág. 40

[19] Fortemente inclinada a atender pressão do setor mineral, a alteração da legislação no Senado Federal que modificou a finalidade das Florestas Nacionais, anteriormente criadas para proteção da flora e fauna, mas permitida a exploração racional dos recursos florestais, até porque concernente à denominação da área de proteção chamada com o termo Floresta Nacional. Após a alteração que Ligia Simonian se refere, as FLONAS (Florestas Nacionais) passaram a ter como objetivo a exploração de recursos minerais também, em flagrante casuísmo mineral. N A

[20] obra citada, pág. 45

Bauxita ou castanha?

28 de Março de 2002 – Hoje, os participantes da audiência pública no auditório da Câmara Municipal de Oriximiná poderão repetir Pilatos ao lavarem as mãos diante de uma cruel indagação florestal: bauxita ou castanha? Mina ou castanhal? Royalties ou safra? O que é melhor para a sociedade oriximinaense?

  A despeito de não receber a devida atenção em época apropriada, o assunto tem conotação de urgência e foi colocado na pauta de discussão quase que por acaso no início do mês, quando os relatórios foram distribuídos nos principais órgãos públicos da cidade até que chegou em escritórios na capital do estado. Nada obstante as razões de parte a parte, ainda é tempo de lembrar o passado, quando o interventor federal Magalhães Barata, no ano de 1931, decretou para os castanhais do Pará, o mesmo status das minas de ouro, o que levou o ilustre paraense Silvio Meira a batizar as castanhas de ouro vegetal e tentar uma solução salvadora para as centenárias florestas de castanhais do Sapucuá, no município de Oriximiná.

  Mas, essa lição histórica não foi apreendida pelos técnicos e gestores das empresas interessadas no ramo florestal e minerador. Hoje, a castanha seria descartável, de somenos importância a julgar pelas proposições no Relatório de Impacto Ambiental - Rima produzido por empresa estrangeira aos assuntos amazônicos, revelando mais ignorância do que saber técnico, ao sugerir ´compensação de coleta dos ouriços em fazendas de propriedade da Mineração Rio do Norte - MRN´.

  No que se refere ao direito de propriedade da mineradora, data do ano de 1989 o Decreto Presidencial nº 98.704, de 27.12.89, ressalvados que foram pelo texto legal. Diz o Art. 4º - ´Fica excluída do presente Decreto, a área de 1.884 ha, denominada Almeidas, de propriedade da Mineração Rio do Norte, conforme escritura pública de compra e venda e cessão de Direitos Hereditários e Meação lavrada no Cartório do 24º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, Livro número 2.809 - fls 72 D 20, em 25 de março de 1983.´

  Não se discute o direito de propriedade à Mineração Rio do Norte no ato legal efetivado para garantir a exclusão de suas terras da área que integrou a Floresta Nacional do Saracá-Taquera, mas, o absurdo que é a proposta de derrubada de 344 hectares de castanhais que teimam em ficar a 25 metros acima da bauxita metalúrgica a ser explorada no subsolo.

  O que importa é perceber a forma como opera o estado brasileiro nas questões ambientais na Amazônia, levando em conta quase sempre o interesse externo, em detrimento dos interesses mais genuínos da população que vive dos castanhais, como é fato reconhecido no Rima, ainda que tratando a questão da extinção dos castanhais com o cruel eufemismo da ´supressão´.

  Tais fatos são aqui trazidos como forma de lançar luz na iminente discussão que se fará sobre a proposta conjunta do Ibama e MRN em criar a partir das comunidades ribeirinhas do Lago do Sapucuá novas entidades coletivas de direito privado, para então firmar convênios administrativos e viabilizar a exploração econômica da Floresta Nacional Saracá-Taquera pelo lado do lago, enquanto a mineradora destrói a verdadeira economia da região, como é o caso dos castanhais e outras florestas de madeira nobre.

  A Flona do Saracá-Taquera foi criada pelo decreto acima em 1989, mas até o momento sem definição planejada para sua exploração econômica, bem como a inexistência de notícias acerca do cumprimento das ´necessárias desapropriações´, na forma do Art. 6º - ´A Área da Floresta Nacional, ora criada, fica declarada de interesse social, conforme preconiza o art. 5º, letra ´b´, da Lei nº 4.771/65, ficando as desapropriações que se façam necessárias a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.´
  Por outro lado, espera-se melhor sorte aos habitantes do Sapucuá nos dias de hoje, posto que é o Ibama parte legítima na administração da Floresta Nacional do Saracá-Taquera, tipificada na legislação federal como unidade de conservação da natureza, mesmo que seu administrador, servidor público federal do Ibama , tenha residência e escritório de trabalho na Vila de Porto Trombetas, distante do lago Sapucuá cerca de 6 horas de barco regional. As Florestas Nacionais - Flonas e a Saracá-Taquera é uma delas, são definidas como ´... área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivos a produção econômica sustentável de madeira e outros produtos vegetais e a pesquisa científica, especialmente de métodos para exploração sustentável de florestas nativas. Portanto, essa área protegida destina-se principalmente à exploração sustentada da madeira e outros recursos florestais, possibilitando também a recreação, educação ambiental e o manejo da fauna. Constituída somente de terras públicas, é permitida a visitação pública, de acordo com o que estabelecer o plano de manejo e o órgão responsável por sua administração, como também é permitida a presença de populações tradicionais (BENATTI, 1996,p.57), apud Professora e Mestra em Direito Ambiental Maria do Socorro de Almeida Flores, in O meio ambiente e a proteção dos recursos florestais no Pará: uma abordagem jurídica, pág. 159, UFPA-FFA, Belém, 1999.

  E o próprio ato de criação da Flona Saracá-Taquera já traz no seu bojo a respectiva competência deferida ao Ibama , na forma do artigo 3º - ´Objetivando atingir os fins técnico-científicos e econômicos, fica o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis autorizado a celebrar convênios, visando a maior proteção e o manejo futuro dos recursos naturais renováveis da Floresta Nacional Saracá-Taquera, sob regime de produção sustentada.´

  Ora, para que não se venha no futuro dizer das mazelas causadas pelo ´lavo as mãos´ histórico, especialmente em dia santificado, exige-se que a mineradora e o órgão ambiental divulguem e esclareçam ao público presente na referida audiência todas as informações disponíveis, relatórios, vistorias, quantidade de massa florestal a ser suprimida, inventário florestal (requisito básico em Plano de Manejo Florestal), tudo dentro da legalidade do estado de direito, para instruir medidas mitigadoras do impacto ambiental causado pela atividade mineradora com vistas a legitimar diante da sociedade a exploração sustentada economicamente da Flona Saracá-Taquera, preservando os centenários castanhais, dando vezo ao discurso governamental do ´desenvolver sem desvastar´.

(Artigo de João Bosco Almeida, publicado na Gazeta Mercantil, Opinião, em 28.03.02)

Ambiente Trombetano *

            Ainda no capítulo da história da região não é possível omitir a introdução de um estudo sobre a bacia do rio Trombetas, de autoria do pesquisador Victor Leonardi[1] ao contextualizar seu projeto de tese escrito para o concurso de seleção ao Programa Transdisciplinar de Doutoramento em Economia Ecológica da Universidade de Brasília, nomeada de Ecologia e Mineração na Amazônia – história Econômica e Ambiental do Vale do Rio Trombetas, Brasília, março de 1994, para quem a história empresarial tem sido pouco valorizada nas universidades brasileiras.[2]

            Os primeiros cronistas coloniais da Amazônia dão poucas informações sobre o Trombetas. A viagem de Francisco de Orellana, relatada por Carvajal, em 1541-1542, deixa-nos, entretanto, uma imagem muito viva dos habitantes deste afluente do rio Amazonas. Gritando e tocando enormes trombetas, os autóctones defenderam suas aldeias diante da inesperada e repentina chegada dos soldados espanhóis , comandados por Orellana. Como a expedição não fora planejada, os ibéricos quase sempre se sustentaram, no decorrer dessa viagem, atacando aldeias indígenas para se abastecer. A comida era abundante, como relata Carvajal (peixes, tartarugas, aves aquáticas), e a população numerosa[3]. Vem desse primeiro contato com o Rio Trombetas o nome atual de toda a região amazônica, inclusive do grande rio, que dá nome a esta bacia hidrográfica, pois Carvajal observou, no Trombetas, mulheres de cabelos compridos atirando flechas e lutando com mais coragem do que os homens. Lembrando-se da lenda grega, chamou-as de amazonas.

            Até os relatos de Frei Gaspar de Carvajal, sacerdote da expedição de Orellana, o rio Amazonas se chamava de Santa Maria Del Mar Duce, nome dado no ano de 1500 pelo navegador espanhol Vicente Yanez Pinson, na histórica viagem realizada antes do descobrimento do Brasil. Foi outro padre viajante na expedição de Pedro Teixeira no ano de 1637, Cristobal d’Acunha, que divulgou a lenda das amazonas no Velho Mundo. De acordo com os registros de Martius[4] que se baseou no relato dos dois religiosos “….desembarcada a guarnição de Orellana, que aportara na foz do rio Cunuris[5], sofreu o ataque de índios em cujo número combatiam mulheres, e, portanto, este sítio é ponto clássico para a etnografia e geografia do rio maior (Amazonas) que deriva o nome desse fato, tantas vezes floreado e posto em dúvidas.”[6]

            Não são muitas, como se percebe, as informações deixadas pelos primeiros cronistas a respeito do rio Trombetas. Durante muito tempo a História do Brasil foi escrita de forma etnocentrista, aparecendo a Europa como centro civilizador e os povos autóctones da América como bárbaros. Foi somente no início das pesquisas arqueológicas na região amazônica que esses preconceitos começaram lentamente, a ceder terreno pra uma historiografia de novo tipo. Nos anos mais recentes a Etno-História e a Eco-História – ou História Ambiental – tornaram ainda mais ridículas as pretensões eurocêntricas anteriores, que faziam do primeiro contato com o branco  – o “descobrimento” – o marco zero da história amazônica. Diante desses avanços arqueológicos e historiográficos, o passado do rio Trombetas já pode ser hoje apresentado de forma mais precisa. A bibliografia existente será comentada a seguir de forma sucinta. E as principais informações serão reunidas a título de introdução à história desse importante rio do Pará Setentrional.

            Sobre o Povoamento Inicial relatado pelo doutorando Victor, consta que os primeiros estudos da cerâmica atribuída aos Conduri foram feitas por Peter Paul Hilbert e publicados em 1955, num pequeno livro intitulado A Cerâmica Arqueológica da Região de Oriximiná.[7] O autor analisa um importantíssimo material pré-histórico  coletado entre Óbidos, Terra Santa e Nhamundá[8]. Fica evidente a importância dessa cultura pré-colombiana no Trombetas, pois a cerâmica é muito bem elaborada, com detalhes surpreendentemente finos e elegantes, que revelam a existência de artesãos qualificados vivendo às margens desse rio. 

            Vinte e cinco anos depois, o Museu Paraense Emílio Goeldi deu início a uma série de pesquisas arqueológicas na mesma área, com apoio financeiro da Mineração Rio do Norte. Os trabalhos de campo foram realizados em quatro etapas (uma em 1981, duas em 1985 e uma em 1988) e o relatório preliminar – redigido em 1990 por Klaus Hilbert, descreve 47 sítios arqueológicos existentes nas imediações de Porto Trombetas, Lago Batata e Serra do Saracá. Segundo K. Hilbert, o “número de sítios arqueológicos da região poderia indicar um denso povoamento pré-histórico indígena durante um período aproximado de 2.500 anos de ocupação. A importância dessa área não se refere somente ao espaço-tempo (localização e antiguidade), mas à oportunidade de estudar antigas culturas amazônicas através de uma abordagem ecológica, considerando os diferentes nichos adaptativos detectados na região: ambiente ribeirinho, várzea, terra firme e serra. A alta densidade demográfica sugerida pela quantidade de sítios localizados poderia se uma prova da intensa capacidade de manipulação, localização, produção e exploração dos recursos oferecidos pelos diferentes nichos ecológicos”.[9]

            A seguir vem a descrição sumária, feita por Hilbert, dos 47 sitios arqueológicos, dentre os quais destaco o de Boa Vista (margem direita do Trombetas, aproximadamente 1 kilometro a maontante da Mineração Rio do Norte), o de Hakibono (margem direita do lago Batata, a 10 kilometros de Porto Trombetas), o do igarapé do Moura e o da Ilha Caranã.

            Dado o caráter ainda inicial dessa pesquisas – dos 47 sitios arqueológicos descobertos, apenas 4 haviam sido parcialmente estudados até 1990 – pouco se pode dizer a respeito da vida desses primeiros habitantes do vale do rio Trombetas. Não se pode, inclusive, relaciona-los de forma direta com os indígenas que os cronistas coloniais encontraram entre os rios Nhamundá e Trombetas nos Séculos XVI e XVII, pois nesses dois milênios anteriores, muitos outros povos, geralmente semi-nômades, podem ter passado pela região. O que se pode, porém, afirmar desde já, é que a história do povoamento inicial desse rio é muito anterior à chegada do colonialismo europeu, nada justificando, portanto, a versão eurocentrista da História da Amazônia que até há pouco tempo ainda predominava nas escolas brasileiras.

            A idéia de quem chegou primeiro em determinado lugar ainda desperta paixões seladoras de grande identidade com o meio ambiente. Ao largo da linha histórica avassaladora de que tudo aconteceu após uma causa primeira, os primeiros contatos com a chamada civilização aconteceram de forma diversa para cada tipo de povo habitante nas margens do rio Trombetas. Se hoje os negros herdam direitos constitucionais em função de sua ancestralidade, que dirão os oriximinaense caboclos descendentes direitos dessa gente autóctone forjada no cadinho cultural dos omáguas, aroaese, apantos, condurizes, abois, etc…  cujas pesquisas arqueológicas já autoriza a falar em civilização antiga?

            Assim é que a língua Kaxuyana pertence ao tronco lingüístico Karib. O Rio Trombetas era chamado, por esses índios de Kahu, e seus habitantes de Kahu-yana. Kaxuyana, portanto, significa “gente do Trombetas”. Protásio Frikel estudou os Kaxuyanas e sobre eles publicou alguns artigos na Revista do Museu Paulista, em 1953 e 1955. Segundo esse autor, a mitologia Kaxuyana se refere a dois grandes cataclismas que teriam destruído esse povo em épocas remotas, nas áreas dos rios Trombetas e Cachorro, seu afluente pela margem direita. O primeiro povo mencionado pela tradição oral desses índios teria sido destruído pela “grande enchente”. Os poucos sobreviventes repovoaram a mesma área, mesclando-se a outros indígenas vindos do rio Amazonas, da parte oriental do grande rio. Teriam sido, por sua vez, destruídos pelo “grande fogo”. Novos imigrantes indígenas, os Warikyana, vindos do Baixo Amazonas via Paru do Oeste, integraram-se aos antigos habitantes do Trombetas, e é este povo, que já conhecera sucessivas mestiçagens e aculturações, que foi contactado pelos primeiros colonizadores portugueses. Esta última onda migratória deu-se por volta do Século XVIII, dela se originando uma série de sub-grupos Kaxuyana: os Kaxuyana propriamente ditos, os Warikyana, os Kahyana e os Ingarune. Segundo Protásio Frikel, as relações entre esses povos do Trombetas e afluentes tanto foi pacífica como guerreira ao longo do tempo. E foi nesse estágio que frei Francisco de São Mancos conheceu-os, no início do Século XVIII. O relato desse missionário – considerado o “descobridor” do Trombetas- descreve os “caxorenas” entre 1725 e 1728.[10]

            Foi também frei Francisco de São Mancos quem primeiro descreveu os índios do Mapuera, rio da bacia do Trombetas: os Xereu e os Wabui. Estes últimos, antes de terem sido aldeados em Faro, no Nhamundá, viviam às margens do Trombetas. Os índios HixKaryana, hoje majoritários na aldeia Cassauá, do Nhamundá, provavelmente descendiam também daquele grupo transferido do Trombetas para Faro, por Frei Francisco de São Mancos.[11]

            Veja-se a riqueza de detalhamento a que os primeiros exploradores chegaram a fazer sobre a região. Ainda incomoda o pensamento quando gente alheia aos interesses locais afirma não existir bibliografia  que permita estudar a região, e passa a inovar e mistificar as questões regionais. Ao final desta obra, listaremos dezenas de livros que foram produzidos por aqueles que já fincaram os remos nas “plúmbeas águas do Trombetas”.

            Este capitulo não estaria completo se não mencionasse o principal explorador do vale do Trombetas, não exatamente o curso principal do rio, mas o principal afluente histórico que é o Cuminá, ou Erepecuru. Padre Nicolino conta detalhes em seus diários, mas o que mais autoriza sua inclusão nesta obra é o fato de que foi este farense que ensinou a pensar as questões locais a partir dos seus registros e preocupações, sempre presentes nas suas ações de sacerdote, explorador de selvas.

Desta maneira, no apêndice o leitor vai encontrar a transcrição integral de “Diários das Três Viagens de Padre Nicolino”, publicação elaborada a partir do manuscrito histórico do religioso, hoje na biblioteca particular dos familiares do Gen. Cândido Mariano da Silva Rondon, no Rio de Janeiro.

            Ao fechar estes relatos históricos, voltamos a Victor Leonardi para verificar a carência de teses, digamos, sociais sobre os impactos da mineração no vale do Rio Trombetas.  Como se percebe, se alguém fosse hoje escrever um tratado sobre as riquezas minerais do Brasil, e as industrias a elas relacionadas, dedicaria, por certo, um espaço imenso (vários volumes talvez) à bauxita e à industria do alumínio, e não mais página e meia, como fez o ilustre e competente Fróes Abreu, em 1936. Num curto espaço de tempo – em termos históricos- esse setor da economia brasileira foi completamente modificado. E , no entanto, os historiadores da economia ainda não dedicaram ao alumínio a atenção que merece. A bibliografia relativa ao ferro e seus minérios é muito extensa, desde o Século XIX (a primeira forja, de Araçoiaba, imediações de Sorocaba, é do século XVI). A mineração do ouro também recebeu uma atenção muito grande da História Econômica do Brasil, principalmente o Século XVIII, em Minas Gerais,  Goiás e Mato Grosso. Há vários estudos importantes sobre o carvão ( a alma das industrias, como dizia Fróes Abreu), e um número ainda maior sobre o petróleo. Mas outros minérios (níquel, manganês, estanho, tungstênio, areias monazíticas, titânio, cromo, chumbo, bismuto, molibidenio, platina) ainda não foram devidamente incorporados à historiografia brasileira, embora existam depósitos no Brasil e, às vezes, a mineração já tenha sido iniciada há muito tempo. Este é o caso da bauxita. Muito bem estudada por geólogos, engenheiros de minas, químicos e alguns macroeconomistas, a bauxita ainda não recebeu o destaque que merece na história econômica do Brasil. Embora o Brasil tenha se tornado o terceiro produtor mundial! A decisão de escrever esta tese visa, entre outros objetivos, o de suprir um pouco essa lacuna.[12]

            É preciso tirar a bosta do boi dos saltos da gente de Oriximiná e deixar cair a poeira da bauxita, vermelha, ardente e pujante na economia nas camisas de todos. O curral é limitado pela cerca das grandes fazendas e pequenos feudos, isolados na renda própria, enquanto a mina espalha a poeira mineral no ar com chance de contaminar a todos com o pó do desenvolvimento aberto para toda a sociedade.


[1] doutorando em Economia Regional, visitou e estudou em Porto Trombetas, Oriximiná, em 1982 e 1993.

[2] idem, idem, ob. Citada. Pág. 05

[3] apud Maurício de Heriarte, provedor-mor e auditor do governador, em publicação no ano de 1697, informa que “…é um rio mui povoado de índios de diferentes nações: conduris, bobuis, aroaeses, tabaos, curiatos e outras muitas; todos possuem seus próprios ídolos, cerimônias e governos…” N A

[4] Martius, Freiherr Von. Reise in Brasilien, Munchen, 1831

[5] antigo nome do atual rio Nhamundá. N. A.

[6] artigo para o jornal Urua Tapera, em novembro de 1992

[7] Na verdade há uma pequena e substancial incorreção a admitir veracidade nessa afirmação, pois, foi Curt Niemundaju, em 1927, que em Santarém fez estudos sobre essa cerâmica que batizou como konduri. Peter Hilbert continuou esses estudos e localizou na região de Oriximiná as coletas do material arqueológico popularmente chamada de caretas pelos habitantes da região.

[8] Ao omitir o nome da cidade de Oriximiná, sede principal das pesquisas de campo de Peter P. Hilbert, o pesquisador doutorando parece cumprir uma diretriz básica da administração de Porto Trombetas que até hoje não informa o nome do município em suas publicações em geral.

[9] Hilbert, Klaus. Salvamento Arqueológico na Região de Porto Trombetas. Relatório 1990, Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 1990.

[10] Apud Victor, obra citada, página 10

[11] idem, idem

[12] idem, idem, pág. 11

  • * este é um capítulo do livro Kondurilândia, lançado em abril de 2000, no Restaurante Jacitara, tendo o autor autografado 70 exemplares no evento

AS GENTES PENSAM DIFERENTE

(capítulo do livro Kondurilândia – Ideias e registros na gênese de uma nova unidade federativa no oeste do Pará, publicado em abril do ano 2.000)

Nas minhas andanças por este enorme Brasil diferente, já vi bastante um pouco de tudo. De Brasília fui às Minas Gerais, senti a garoa paulista, o frio do sul catarinense, o vento da brisa pernambucana no cabo de Santo Agostinho bem como as areias da praia de Iracema no Ceará. Retornando a Belém, Santarém e Oriximiná nas frequentes viagens nada faz ceder o sentimento nativo da terra onde aprendi as virtudes básicas do amor e da humilde caminhada: aprender a aprender para ensinar o aprendido.

Em cada lugar, as gentes e falas diferentes fazem o Brasil ser essa miscigenação de idéias e ações que atemorizam o mundo. Sem rígidos rituais no caráter aprendemos fácil e emulamos qualquer tecnologia para dela evoluir na produtividade. Não é a toa que muitas empresas multinacionais têm executivos brasileiros nos principais cargos, pela facilidade de assimilar os ensinamentos e traduzir em resultados.

Daí ser imperioso nossa agregação na matriz diferencial que move o resto do Brasil. No planalto central sopra um ar condicionado permanente que enrola na rede qualquer amazônida. Mas, lá também somos brasileiros, confundidos com “paraense do leste”. Fala e modos diferentes denunciam de pronto a origem, a cultura e o ideal de vida e como deles, podemos gerar riquezas e qualquer parte desta federação.

É orgulho e necessidade. Vincado na forja da identidade cultural, nunca negamos nossas histórias de Oriximiná na infância e Santarém na juventude, para aqueles que gostam de conversar e saber das coisas da vida. Foi assim que aprendemos a aprender um pouco de tudo que é necessário para forjar um projeto de vida. E neste plano há sempre espaço para pensar a terra querida de Uraxá.

E isto nos faz brasileiros. Em nada vamos perder ao Pará ou do Pará. Em nada vamos diminuir no patrimônio e nem na verve cultural, nas artes ou seja lá em que manifestação da vida local, porque antes de sermos os paraenses ou outra naturalidadade de origem, nos identificamos em primeiro lugar como brasileiros nativos.

Por isso, não há mais argumentos emocionais que caibam nessa discussão separatista. Se eles vierem, como sempre virão, precisamos estar aptos a rechaçá-los da discussão, dando vezo às análises mais apuradas como é a geo-econômica, a identificação cultural, a imaginação da região povoada de particularidades e coisas bem próximas do povo vivente. Ocorre que agora, podem ser outros os motivos que nos querem separados.

Ainda lembro que o senador Passarinho, paraense por adoção, com umbigo enterrado no Acre, impingiu a expressão “falta de paraensismo” para aqueles que durante a constituinte articulavam sobre a autonomia do novo Estado.

Na época fiz artigo rebatendo tal tese emotiva e prenhe de inverdades históricas. Fi-lo ler a partir das páginas de O Liberal a questão da separação lusitana, a quando do nascimento do nosso país. Teria sido falta de lusitanismo quando D. Pedro “gritou” o Ipiranga?[1]

Atualmente, o governador roda a fita repetindo o epíteto da logomarca política por onde foi eleito para não o permitir praticar nenhum ato que faça a divisão do Pará. Isso é para aqueles que acreditam em papai Noel.

Ora, excelência, ah se todas as promessas feitas em campanha fossem cumpridas? Sim, não estaríamos gastando verve nem tempo para interpretar a vontade das gentes em sair do julgo de Belém. Muito pouco se teria inventado para não pisar na lama das estradas que teimam em ligar lugar nenhum ao nada neste interland continental do estado ainda paraense.

Por que? Porque se busca autonomia quando se identifica um quadro carente. Isso, nós somos como um sistema orgânico onde na falta das matérias primas essenciais, se instalada o estado de necessidade.

E de necessidade nós sabemos muito bem.

*

Das várzeas temos muito que pensar e falar. Você, caro leitor, já viu alguém registrar várzea no Registro Imobiliário e com tal registro gravar uma garantia para receber empréstimo bancário.

Para o sistema legal, várzea não pode ser considerado imóvel. Os doutos dizem que não se pode medir as distâncias que se apresentam diversas a cada ano. Os romanos resolveram esse problema com o instituto civil da acessão natural.  Elemento essencial da topografia exigida para os memoriais do INCRA ou ITERPA, não será o tamanho da área impeditivo na regularização da várzea. Talvez aqui também esteja forte o vírus da omissis ativus.

Legalmente são terras pertencentes à União, quando estão em ilhotas, ou agregados de terra firme ou em áreas do Estado, o ITERPA é competente para sua regularização. O problema é que elas vêm e vão ao sabor das cheias, mas o tempo fora d’água é suficiente para o registro. O que falta é vontade política de resolver a questão.

Mas, se nós pudéssemos dirigir nosso destino com autonomia, será que já não teríamos feito valer um critério justo para registrar e valorizar nossas várzeas?

Vejam os holandeses. Eles são mais ou menos inteligentes? Não se admite esse o critério para a diferença, mas, será que se eles dependessem de um governo tão longínquo quanto nós eles já teriam resolvido a questão agrária deles? É o tamanho da área que importa? Quanto menor, melhor a administração e o controle, requisitos básicos de qualquer governo.

Bem, vejamos o que me disse um político na época da Constituinte do ano de 1988. Naquele tempo, parece até bíblico, disse-me um deputado: “Não adianta fazer muito barulho, porque senão o governador vai brecar os repasses para a região”. Mas, continuou o parlamentar, “vamos ver se conseguimos incluir uma cláusula nas disposições transitórias para um futuro plebiscito, ou coisa parecida. Assim, estaríamos garantindo essa disputa para mais tarde, quem sabe com mais argumentos e força política”. E assim foi. Lá eles conseguiram votar tal dispositivo, que agora permite a consulta popular.

Nesse meio tempo, era 1988, estávamos em Brasília representando a Associação Comercial de Oriximiná, com colegas de Santarém e Óbidos, além de meus companheiros de Oriximiná. Também nós sentimos as divergências entre nossa chamada bancada no almoço que fizemos com eles.

Lembro ainda que o então “prefeito” do Congresso Nacional, Jorge Arbage, nos recebeu no seu gabinete e afirmou olhando pela janela que dava para o chamado “fogo da pátria”.

“Ali se gasta uma fortuna diária para manter acessa a chama da pátria. Sim, porque o sistema é alimentado por gás de cozinha…” Fiquei paralisado ao ver dinheiro pegando fogo!

Mas, voltemos às várzeas…

Elas são boa terra, como aquela dos chineses para o plantio do arroz. Nelas,nossos antepassados indígenas colhiam o arroz nativo para dele fazer seus banquetes. Já disse isso em outros escritos tirados dos registros do Ferreira Penna[2]. Hoje, os arrozais são vastos e a cada cheia ficam alimentandos os patos e marrecos.

Ainda sobre as terras que margeiam os rios do baixo-amazonas na seca e nas cheias sustentam o igapó, os pastos de búfalos, diz-se que são férteis como as do rio Nilo. Lá crescem o papiro, aqui o muri e a canarana, alimentos natural do gado, riqueza de qualquer ribeirinho.

Uma vez um veterinário da UFRJ, Dr. Sebastião, dizia a meu pai que eram os minerais presentes nas canaranas[3] que brotam às margens do rio Cachoery que davam aquele peso e cor ótimas ao bovinos.

Assim, nossa vacas nunca ficam loucas. Isso é biodiversidade na melhor forma ecológica de aproveitamento para a globalização. Gado vegetariano, diferente dos bois de lá comedores de ração animal.


[1] PAROESTE – Falta de Paraensismo? . veja texto integral no apêndice

[2] Ferreira Penna, Domingos Sávio, in Viagem à Região Ocidental da Província do Pará, 1852

[3] tipo de capim muito nutritivo e de bom apetite para o gado da região

Antes de Uruá Tapera

AOS TROMBETISTAS AMBULANTES DA TERRA
AMAZÔNICA, QUE DESCENDO COMO AS ÁGUAS
PARA O MAR, AINDA ASSIM,
DEIXAM O BRADO DA VIDA
VINCADO NOS BARRANCOS E FALAS DAS GENTES
EM BUSCA DA UNIÃO DE FORÇAS NATURAIS ( trecho do livro TROMBETAS, obra de João Bosco Almeida, aguardando orçamento na Gráfica Andrade, em Oxa)

            Para melhor entender a região do entorno do vale do rio Trombetas, onde se acha instalada presentemente a Vila de Porto Trombetas e inserto o empreendimento  extrativo-industrial da bauxita, cumpre conhecer as características do lugar o qual se propõe a integração.

 O retorno ao passado, será possível através da leitura ipsi literis de um dos mais remotos registros científico sobre A região Ocidental da Província do Pará e alguns trechos do Projeto de Tese escrito para o Concurso de Seleção ao Programa Transdisciplinar de Doutoramento em Economia Ecológica, da Universidade de Brasília, de Vitor Leonardi. O material histórico se apresenta farto das dificuldades de então para acessar a região, tanto via registros em livros, mapas e banco de dados, como fisicamente, ou seja, guardadas as devidas proporções, talvez não se tenha evoluído muito nesta questão. Também se faz presente as riquezas naturais como o cacau, a castanha e madeira, como também as notas sobre os aspectos geográficos que são ainda hoje os pontos de referência para os viajantes, como o rio Caxueri, Igarapé do Sapucuá e lago do Mari-Apixi.[1]

 Desfaz-se, porém,  a idéia romântica de que antes se podia tudo fazer porque não era preciso autorização oficial para nada e nada impedia o andar dos navegantes pelas regiões. Não, sempre será difícil vencer as dificuldades do comodismo, da indolência e do status quo.

            O naturalista e etnólogo mineiro Domingos Soares Ferreira Penna[2], faz considerações gerais sobre a sua viagem além de detalhar minuciosamente aquilo que encontrou de mais relevante economicamente no trecho de Óbidos a Faro[3] e depois sobre os rios Trombetas e Jamundá.

            Achava-me em Óbidos desempenhando uma comissão reservada do governo provincial quando recebi da presidência instruções, recomendando-me que, sem prejuízo daquela comissão, procurasse conhecer e estudasse o estado e condições das localidades por onde tivesse de transitar, coligindo todos os dados estatísticos que interessassem à administração.

            Ainda que não tivesse viajado para região com  objetivo de estudar a economia e costumes da região, o cientista fez um trabalho estatístico notável de fevereiro a agosto do ano de 1868, revelando para o resto do império o quanto já se fazia na região, transformando os dados colhidos na primeira estatística regional, ponto de partida para quaisquer estudos mais aprofundados da economia do MERCOTROM.

Segue a metodologia de transcrever em itálico os trechos mais significativos do relatório, e aqui e ali, com a permissão dos leitores, serão feitos comentários julgados importantes.[4]

            Para satisfazer a esta nova exigência, pareceu-me indispensável ampliar muito mais o campo das minhas digressões, pois que seria extremamente incompleto qualquer trabalho que não compreendesse, ao menos, os pontos principais daquela região.

            Relata o naturalista que era estação chuvosa, mas apesar dessa condição desfavorável, não se intimidou.

            Não obstante, porém, a má estação, feito o meu programa, tratei de executa-lo. Aluguei uma pequena galeota com as acomodações apenas indispensáveis para viveres e para uma diminuta bagagem; mas, faltavam remeiros, e tal falta é o maior obstáculo com que tem de lutar quem empreende uma viagem pelo interior da Província, principalmente para lugares longínquos e quase desertos, onde os  recursos são nenhuns ou incertos.

             Tentei debalde contratar os remeiros necessários para a minha canoa, dirigindo-me ora a pescadores, ora a outros indivíduos sem ocupação regular, embora fortes e sadios. Todos, uns após outros, respondiam-me invariavelmente por estas palavras: -“não posso, patrão!”

            Nenhum deles explicava a razão desta recusa, – humilde, fria, mas inflexível e capaz de impacientar e desesperar a um homem que não conhecesse os hábitos e a indiferença desses indivíduos para o dinheiro.

            Não é possível resistir à imaginação de que ainda hoje há tal indiferença ao que está posto para a população. Como se as grandes questões não lhes afetassem a iludida vida pacata. Seria pelo mesmo motivo de dois séculos passados?

            Entretanto, se o subdelegado de polícia ou se o seu comandante (sendo ele guarda nacional) lhe ordenar que pegue o remo e salte para a canoa, não resta a menor dúvida de que o homem, que a todas as ofertas e promessas respondia – não posso ­– estará a bordo à hora da partida, vencendo ou não qualquer jornal.

            Tal é o viver do descendente do índio! Tal é o poderio absoluto que sobre ele exerce a autoridade no interior da Província.

            Prevenindo assim, deste costume a futuros viajantes, devo declarar que não recorri àquele expediente para obter a tripulação precisa; cheguei ao mesmo fim por outros meios, graças à benevolência e bons ofícios de alguns cavalheiros da cidade que conseguiram por mim tudo que me era necessário para a viagem.

            Enquanto estes arranjos se não concluíam, aproveitei o tempo de que dispunha para adiantar os trabalhos, percorrendo toda a povoação, estudando as suas condições atuais e consultado o arquivo municipal a fim de obter alguns esclarecimentos que me guiassem no estudo sobre os primeiros estabelecimentos do lugar.

            Procedi a iguais diligências, durante a viagem, em outras localidades das duas comarcas, reconhecendo com pezar que os arquivos municipais são extremamente pobre de documentos que interessem à história, porque os mais antigos foram subtraídos ou queimados durante o domínio da rebelião de 1835.

            Cabe refletir sobre o registro do arqueólogo mineiro-paraense ao se constatar que muito pouco mudou em todos esses anos. A rebelião que se refere é a Cabanagem que produziu na região oeste da Província estragos e desavenças com os chamados brasileiros versus português recheadas de incêndios, saques, prisões, mortes e fugas para o mato.

            As minhas digressões seriam dirigir-se em primeiro lugar à vila de  Faro, povoação isolada no extremo oeste da Província, e nunca descrita, nem conhecida na geografia do nosso País senão nominalmente e de um modo inexato.

            Dois caminhos se me indicava para ir ter àquela vila: o primeiro e o mais curto era seguir de Óbidos, Amazonas acima, alcançar o Paraná-Mirim do Bom Jardim, pelo qual subiria a encontrar o do Caldeirão, descendo pó este até o Jamundá que vai ter a Faro.

            O segundo caminho era entrar e subir um pouco pelo Trombetas até a foz do Jamundá (chamado ali Igarapé Sapucuá) subindo-se depois por este até aquela vila.

            Embora mais longo e extremamente enfadonho, preferi este último caminho, não só porque por ele me aproximava mais das fazendas de criação, existentes entre os lagos Sapucuá, Mariapixi e Algodoal[5], mas também porque, desejando reconhecer, ainda que por um ligeiro exeme o ponto da margem do Amazonas onde as cartas colocam a foz do Jamundá, convinha acompanhar este rio em grande extensão do seu curso inferior para melhor compreender o que havia de exato nessas cartas.

            Ferreira Penna finaliza esta apresentação dos escritos dizendo que escolheu o segundo caminho para Faro, passou viajando cerca de 842 milhas em 52 dias de viagem a remo com a seguinte advertência e convite:

            Agora o que convém é que outros corrijam o que está feito e continuem o que tenho iniciado.


[1] Grafias antigas do Cachoeri e Mariapixi. Aliás, é preciso estudar a lingüística e modos das falas regionalizadas para descobrir o significado dessas denominações. Qual o significado de Caxueri, Mari-Apixi nas línguas então faladas, deve ser um desafio lançado para a turma de letras e estudos amazônicos de Oriximiná e demais municípios da região.

[2] Obras Completas, Volume I, Conselho Estadual de Cultura, Belém, 1973, Grafisa, pág. 145

[3] Em 1869, ano da viagem, só havia esses dois municípios na região. N A

[4] O relatório foi divulgado no “Diário de Belém”, em 1869

[5] Algodoal é atual sede do município de Terra Santa. N A

A conta de 30 anos

* artigo publicado em 15 de junho de 2016

O resultado do amadorismo fiscal executado por mais de três décadas em Oriximiná vem à tona no momento em que a ACEOR comemora seus 31 anos de existência e bem menos de atuação efetiva na discussão necessária dos assuntos locais, como finanças pública municipal e carência no quesito associativismo.

Nos primórdios da ACEOR e participando de uma reunião em Belém aprendemos uma lição ouvida e repassada com frequência aos líderes municipais de então: o governo não sabe gerar riqueza, apenas toma recursos dos empresários e gasta em nome de todos, materializando a máxima popular do adeus com chapéu alheio.

No comando inicial da ACEOR, desde sempre nossa orientação política foi pela efetiva gestão no associativismo da classe, discutindo com os representantes do povo a melhor aplicação de recursos na sociedade de modo possível a beneficiar o maior número de cidadãos. Nesse segmento lideramos empresários em vários eventos empresariais no Pará culminando com a participação expressiva de 4 empresários oriximinaenses no Congresso Nacional das Associações Comerciais do Brasil, em Brasília, por ocasião da Constituinte de 1988.

Havia um grande horizonte a ser percorrido por nossas lideranças que poderiam encaminhar nossa economia em sedes mais estabilizadas na geração de riqueza. Poderíamos ter investido o excedente da arrecadação (royalties da bauxita) em infraestrutura que atraíssem novas plantas geradoras de emprego e renda para a sociedade de Oriximiná; na infraestrutura aeroportuária para que destacasse o município como alternativa de rota aérea na Calha Norte; na solução definitiva para a destinação dos resíduos sólidos produzidos na cidade e com isso evitar a péssima imagem e repugnante odor exalado pelo cartão postal da cidade: o lixão da PMO.

Mas não foram essas práticas de ação política positiva que constatamos em Oriximiná nas últimas três décadas quando se analisa a economia e finanças locais: com orçamento anual na órbita de 160 milhões, a PMO comete crime contra o futuro dessa sociedade em não ter cuidado das finanças municipais com ênfase na receita própria. Despreza os ditames da lei de responsabilidade fiscal e insiste em mascarar a queda de arrecadação mineral afirmando que o preço da bauxita caiu no mercado internacional, imitando o outro partido em queda livre no Brasil, que busca negar com discurso a existência dos fatos que insistem em existir e se desdobrar diariamente; a liderança municipal não tem coragem política de dizer que uma das razões da redução de receitas tributárias se dá em razão do exaurimento das minas em solo oriximinaenses, gerando perda física das bases produtivas ao tempo que os vizinhos Terra Santa e Faro começam a auferir a parte da fatia perdida por Oriximiná, uma vez que a MRN continua a manter sua produção anual na ordem das 18 milhões de toneladas de bauxita.

Enquanto isso, nossa municipalidade acumula quase R$ 20 milhões em dívida ativa de impostos municipais (IPTU, ISS e Outros Tributos) não honrados por essa mesma sociedade que titubeia em cumprir sua obrigação cívica; o caos nas finanças também ocorre por inércia administrativa e na falta de coragem política para ajuizar as necessárias cobranças de seus impostos legítimos e necessários para os investimentos locais; outros R$ 8 milhões migram anualmente para o parlamento municipal que não contribui na mesma proporção em fiscalização dos gestores, projetos e articulação política para resolver problemas locais como o fato absurdo de se aceitar em qualquer sociedade que se diz séria e comprometida com seu próprio futuro sustentável onde cerca de 70 (setenta) por cento das casas urbanas da cidade não pagam por água tratada recebida em seus domicílios. Para completar o quadro triste e preocupante das finanças municipais pode-se afirmar que outros cerca de 30 (trinta) por cento das pessoas remuneradas pela PMO, sejam concursadas ou contratadas não aparecem para trabalhar em horários regulares como forma de justificar seus ganhos da municipalidade que ainda apresenta uma planta imobiliária defasada no tempo e na geografia do município, registrando cerca de 30 (trinta) por cento que não paga o IPTU, tributo que tem se tornado em outras cidades a principal fonte de receitas.

Os números acima estão nos orçamentos públicos municipais disponibilizados pela Câmara Municipal, o que falta agora são as pessoas responsáveis pela ação política, sejam instituídas ou não, agirem para recuperar o tempo perdido e fazer a mudança no seu próprio destino cívico.

Finalizo o balanço da conta de 30 anos aprovando a última coleta cautelar de provas para instruir o processamento criminal dos malversadores do erário, mas, de nada adianta se em outubro os eleitores caírem nas cantigas dos oportunistas e entregarem o cofre público para o outro lado. Nada nos garante, nem na histórica carreira populista e beneficiária de recursos públicos que o outro lado vai implementar de verdade um plano de saneamento para a sociedade oriximinaenses.

Parabéns ACEOR, lugar de gente destemida que se propõe ao diálogo com a sociedade e seus líderes! Foi assim que começamos, e deve ser assim nosso contínuo caminhar: em prol do associativismo fortalecido pela sociedade que precisa sempre ter um espaço para dizer o que pensa.

João Bosco Almeida

1º presidente da ACO

Estado do Tapajós: uma questão de governo *

         O deputado federal Aloysio Chaves faz publicar parecer contrário à criação do Estado do Tapajós, na última edição de domingo de “O LIBERAL”, por acreditar que “não há a menor possibilidade de auto-sustentação, salvo se a União reservar-lhe durante mais de um decênio auxílio anual superior a dois bilhões de dólares”. Ora, isto faz com que nós, paraenses deste oeste do Estado, em aceitando esta proposição do ilustre parlamentar, nos esforcemos ainda mais em nossa luta para a divisão do Estado do Pará, pois pela situação econômica expressa em dólares, tão cedo não deixaremos de ser região esquecida e “pobre” , como frisou o deputado.

         Entretanto, diferentemente do que afirma o deputado em seu artigo, não se trata de “emoção e conveniência política de um grupo regional”, mas das aspirações de uma parte do povo do Pará, que inclusive, não quer deixar de ser paraense – na sua extensão mais abrangente do sentido de naturalidade (daí porque há propostas para que a denominação do novo Estado seja Pará do Oeste), – mas quer realmente constatar a ação governamental do Estado presente na sua região; povo que tem as mesmas aspirações de desenvolvimento dos demais habitantes deste nosso país no campo econômico, social, cultural, político, etc., o que aliás, lhe está assegurado na Lei Maior desta nação, mas cujas concretizações desses planos desfazem-se como a névoa, à medida que diariamente verifica-se a impossibilidade de implantação deste ou daquele projeto, por vontade política, por falta de recursos ou motivo diverso; povo como desta minha cidade de Oriximiná, que literalmente “vê o navio passar” levando o carregamento de bauxita de nosso solo, e este mesmo povo vive a choramingar ajuda das prefeituras até mesmo para realizar o seu desejo mais sagrado da alimentação à saúde; povo que para conquistar uma “posição na vida” sacrifica-se e esvai-se para a capital em busca de emprego, estudo ou outras realizações profissionais; povo que não pode se auto-administrar e isto não se dá por falta de bons governadores locais, mas sim pelas condições geopolíticas, vê seus representantes adiarem sempre nossas condições de desenvolvimento, diferirem para um futuro de “decênios” nossas possibilidades de auto-sustentação.

         No artigo, o nobre deputado discorre brilhantemente sobre a jurisprudência constitucional quanto ao exercício da soberania do Estado Federal, segundo a melhor doutrina partilhada pelo Estado Federado, com muito didatismo e função esclarecedora, o que me lembrou os meus tempos de Faculdade de Direito. Assim, gostaria de alongar as colocações do mestre, aqui com a sua permissão, mencionando a orientação de Themístocles Brandão Cavalcanti, em “Princípios Gerais de Direito Público”, 1958, pág.63, que diz: “o terceiro elemento do Estado é o Governo. Nele se concretiza o poder de imperium e o exercício da soberania”. Mais adiante: “A palavra – Governo – aproxima-se, pela analogia, de seus significados do conceito de autoridade, poder de direção, que preside à vida do Estado e provê às necessidades coletivas” (Ob. cit. – o grifo é meu).

         “Nota o professor Duguit que a palavra – Governo – pode ser considerada em dois sentidos – no coletivo, como o conjunto dos órgãos que presidem à vida política e administrativa do Estado; – no singular, como o poder executivo, “o órgão que exerce a função mais ativa na direção dos negócios políticos” (Taité de Droit Constitutionnel, vol II, págs. 785 e seguintes).

         Continua o Professor Themístocles Brandão Cavalcanti “no primeiro caso temos de incluir todos os órgãos legislativos, executivos e judiciários, que exercem os poderes inerentes à soberania, diretamente ou por delegação popular, segundo o regime político. (Ob. cit.).

         Evidentemente, as considerações acima referem-se ao Estado Federal. Entretanto, segundo a “a melhor doutrina que procura conservar aos membros do Estado Federal a qualidade jurídica de Estado”, considero a mesma orientação de nosso deputado, que aliás, é também renomado professor de Direito, a exemplo de outros aqui citados.

         Ora, ao movimento separatista que o deputado atribui “a um grupo regional”, aliam-se jovens como este autor, que das faculdades em Belém vieram para suas origens e aqui juntamente com suas famílias e empresas enfrentam os revezes governamentais, consubstanciados na ausência de quase tudo que seria a ação de governo nesta região. Verifica-se, por exemplo, a ausência de juizes nas comarcas das cidades desta região, a sobrecarga em cima das prefeituras com atribuições puramente estaduais, como exemplo temos a manutenção de escolas estaduais pelos municípios, só para mencionar alguns fatos.

         Então, diante desta ocorrências, como podemos ficar inertes à omissão governamental em nossa região? Podemos checar a existência daqueles atributos inerentes ao Governo, relatados pelos ilustres mestres do direito público internacional, na nossa administração estadual no tocante ao Baixo-Amazonas e regiões afins? Não seria essa a verdadeira razão pela qual nossos representantes legítimos tanto no Congresso como na Constituinte sua luta para a aprovação da criação deste nosso Estado do Tapajós? O povo daqui também é paraense, e como paraense quer continuar se desenvolvendo. Quem sabe uma ação efetiva do governo tivesse sido mais objetiva…

  • publicado em O Liberal, em 19.06.1988

Primeira Viagem ao Cuminá Grande – parte I

DIÁRIOS[1] DE VIAGEM DO

PADRE JOSÉ NICOLINO DE SOUZA

“Deus em sua infinita sabedoria, poder e bondade tudo arranja e dispõe sempre em favor dos homens, porém muitos delles, por irreflexão desconhecendo esta verdade, argúem os actos de sua divina Providência e qualificam de imprudência, temeridade e loucura as ações daquelles, que tem Elle escolhido para, como instrumento, realizar a sua benéfica disposição. É incontestável que todo o dever do homem resume-se no amor de Deus e do próximo. Ama e faz o que quizeres diz Santo Agostinho. Assim convencidos, resolvemos a tentar o descimento dos índios do Trombetas, o Tenente Leonel e eu, porque nada há de mais agradável a Deus do que a exaltação de sua glória, que na terra occupa o primeiro lugar a salvação das suas creaturas prediletas”

Dia 25 de Novembro de 1876 (sabbado) pelas dez horas da manhã partimos do Ageréua propriedade do Sr. Tte. Leonel da Silva Fernandes comigo Pe. Vig. Em duas canoas.

Na mais possante vieram o Tenente Leonel o Pe. José Nicolino de Souza, o Filho do Tts. Manoel Marinho Fernandes o gentio Pedro, o rapaz Vicente. No Uruatapéra[2] embarcarão-se José Agostinho Leandro digo Agostinho Moisinho e João Garcia de Sena.

Em outra canoa vierão a gentia Anna Maria de Oliveira, o filhinho Manoel e o filho do Tte. De nome Francisco Marinho Fernandes, que tendo hido adiante foi por nós alcançado abaixo do lugar dito Corralinho. Já com deliciosa sensação contemplava as aprasíveis margens do maravilhoso Trombeta, suas águas cortadas por vigorosos remos mostravão em seus alvíssimos borbulhões a realidade a realidade de sua pureza. Chegamos ao Achipicá ao entrar da noite e pernoitamos em casa do ancião Pita. No dia seguinte domingo 26 pelas 7 horas do dia continuamos a nossa viagem, tendo embarcado José Agostinho Leandro e Anselmo Francº. dos Santos aquele no Achipicá e este no Lago Grande. Pelas 3 horas e meia da tarde chegámos ao repartimento: à direita segue o Cuminá e à esquerda o Rio Grande; seguimos pelo Cuminá e às 5 h. entramos  pela boca do Salgado em cuja margem tem o Tte. Leonel uma casa aonde chegamos meio hora depois das seis da tarde e pernoitamos.

Segunda-feira 27 ouviu-se o Santo Sacrifício da Missa; partiu-se a 1 hora da tarde, tendo embarcado mais Joaquim Telles de Figueiredo, Joaquim Profírio dos Santos, Antonio Carmo, José Calixto Pires e Antonio Lazaro da Silva, buscou-se o rio Cuminá e seguiu-se. Às 7 horas da noite chegou-se ao Jaruacá em casa do velho Agostinho em cujo porto pernoitou-se.

No dia seguinte 28 embarcando mais Maria de Jesus, filha do Preto Toró com uma gentia e o gentio aina menor de nome João Pedro, saímos; eram 3 e meia da tarde e pernoitou-se na praia do repartimento, acima da boca do Cabaço. Era Domingo, digo terça-feira, dia 29, quarta-feira pelas 7 horas da  manhã fomos ao Cabaço, donde comnosco veio mais o gentio Porfírio d’Assunção. Ao voltar, reunidos ao resto dos nossos companheiros pelas 2 horas da tarde já na Praia do Ianari, seguimos o nosso destino pelas 3 h. e fomos pernoitar sobre a praia denominada do Extremo no estirão grande.

Dia 30 quinta-feira as 9 hras do dia chegamos a primeira correntesa do tronco, isto é, ao princípio das cachoeiras. Um dos panoramas notáveis da Onipotência divina é sem dúvida a cachoeira! Ao ver o tronco das cachoeiras a inteligência contempla e se eleva expontaneamente ao Creador, a imaginação se exalta e um desejo de curiosidade apodera-se da vontade e o homem não se farta, não se cança de examinar os diversos aspectos, que se apresentam ao seu olhar ambicioso. As águas que naturalmente rolam sobre seus leitos sob a sua áurea cor, nas pancadas tomam a brancura da neve e rolando-se furibundas precipitam-se cheias de escumas por entre inabaláveis rochedos. Pelas 3 horas da tarde digo das 9h. do dia até as 3 da tarde tínhamos passado 4 grandes pancadas e pernoitamos junto da 5ª em uma Ilha dita das Lages. No seguinte dia sextaf. 1º de dezembro, passou-se a 5ª e até as 2h. e meia passaram-se mais 4 mais ou menos violentas e pernoitou-se na Ilha do meio defronte da Serra do mesmo nome.

No dia Sábado 2 do mês pelas 10 h. continuamos a nossa viagem e desde defronte da serra do Pandiá uma serra de figura cônica começamos a passar fortes cachoeiras, seguimos depois por terra, levaram as gentes nossas as canoas, já no numero de três, embarcaram-nos no porto da roça que se nos disse ser de Manoel Antonio, por antonomásia Ovelha, tendo passado 4 grandes bancos. Eram 2h. da tarde. Daí em diante passou-se mais 3 bancos e às 4 e meia avistamos ao longe uma grande vala, que da superfície das águas do igarapé elevara-se à altura de 30 a 40 metros mais ou menos; uma massa da brancura da neve exhalando de si fumaça, impedia que se lhe pudesse ver o abismo; suas bordas de alcantilados e medonhos rochedos faziam-nos experimentar um não sei que de prazer e de terror! O que é aquilo, bradam todos!! Mas o que é?! Aquilo que vedes, responde o Piloto: é a cachoeira que se chama Inferno, por ali não se pode passar por causa da violenta força das águas e de insondáveis abismos que aí se acham. Foi quase junto deste sublime medonho, que abordamos as 6 horas da tarde e ali pernoitamos.

No dia 3 Domingo – pelas 7 horas da manhã fomos visitados pelo súdito francês Monsieur Jule Caillat, que acompanhado somente de uma só pessoa  o brasileiro João Felippe já tinha varado[3] a sua não pequena canoa. Foi no abarracamento dele que celebrou-se o Santo Sacrificio da Missa. Oh que doce consolação! Observou-se toda a extensão da cachoeira, que se compõe de 3 bancos horríveis! O abarracamento do Mr. Jule achava-se já alem dos bancos, tendo um delicioso porto, onde tomamos aprasível banho.

Segundaf. Dia 4 do mês continuamos a nossa derrota pelas 11h. do dia, tendo pela manhã varado nossas canoas e pernoitamos em uma ilhinha a direita e abaixo da cachoeira do Cajual. Neste dia passamos 3 bancos de cachoeira.

No dia 5 terçaf. Passando algumas correntes pouco importantes viemos pernoitar em uma ilhinha de areia defronte da serra do Macaco.

No dia 6 quarta-feira pelas 6 e meia da manhã partimos e as 10h. chegamos em casa do creoulo Lautério, donde saímos a 1 hora, entramos pelo Penicoro, igarapé que se acha logo acima desta situação e fomos pernoitar no porto da tapera de Joaquim Sant’Ana.

Quinta f. dia 7 as 7 h. continuamos a nossa tarefa, não podendo chegar à tapera denominada S. Antonio ficamos em lugar acima duma tapera pertencente ao mesmo Lautério, que serviu-nos de piloto e havíamos deixado na casa do mesmo para fazermos farinha, visto termos necessidade e ter ele roça. Ficando na barraca o meu compe.[4] A. comecei as minhas pesquisas de malocas. Assim pois, neste mesmo dia pelas 2h. da tarde acompanhado da gentia Anna, da Maria de Jesus, do filho de meu compe. Francisco, de João Garcia de Sena, de Agostinho Mosinho, de Joaquim Teles, José de Paulo, do índio ou gentio Pedro, José Garcia de Souza e José da Mota – pernoitamos sobre um rochedo no meio do igarapé, ainda distante da tapera S. Antonio.

No dia 8 sexta f. viajou-se e chegou-se pelas 10 h. em S. Antonio onde por falta de mantimentos parou-se.

No dia 9 sabbado viajou-se das 7 h. da manhã às 6 h. da tarde e pernoitou-se a margem do pequeno igarapé chamado pelo gentio Ariminaiacarú (igarapé de barro).

Dia 10. Domingo saiu-se as 9 horas da manhã, às 3 da tarde encontrou-se uma choupana dos índios e abarracou-se à margem do braço direito do igarapé acima dito às 6 da tarde.

Dia 11 segunda f. pomo-nos em caminho às 6h. da manhã em busca duma serra, vista às 3 h. do dia precedente, que indicava estar roçada. Ah! Que lisongeira esperança raiou em nossos corações, já nos pareciam coroadas as nossas penas, os nossos esforços e sacrifícios, pois já se nos tinha acabado a farinha! Quanto, pois, não nos alegrou aquela serra, que ilusoriamente nos mostrava estar ali o objeto de nossas fadigas?

Chegamos à serra às 11 horas e achamos montões de medonhos rochedos que quase não permitiam vegetação alguma, por isso de longe mostrava a aparência de roçados. Que decepção! Que tristeza! Sem farinha por espaço de dias?!

Voltamos com os corações serrados, os nossos guias gemiam apenas entre dentes. Ao chegar na choupana encontrada seguimos subindo o rio encontramos cinco velhas choupanas, que indicavam se terem os índios retirado para mais longe, subindo ao Cuminá. A falta de farinha, muitos dos companheiros adoentados decidiram-nos a voltar e viemos pernoitar na margem do mesmo igarapé Ariminaiacurú. Era 1 h. da tarde quando abarracamos.

Dia 12 3ª feira saímos as 6 h. da manhã e chegamos na tapera Santo Antonio as 3 da tarde. Extenuados como estávamos pela fome paramos e buscamos nas capoeiras bananas e canas, que encontramos em quantidade. Ah! Minha cara pátria és um paraíso e por isso desgraçadamente vegetam teus filhos e não vivem!

No seguinte dia 4ª feira e 13 do mês partimos as 7 h. da manhã e as 2 da tarde abraçávamos alegres os nossos companheiros, que à excepção de um que já deixamos doente, todos gozavam saúde especialmente o Tte. Leonel. O único pezar que nos acompanhava era de não termos encontrado os índios, objeto, certo, do nosso amor.

No dia 14 – 5ª f. as 9 h. da manhã saímos do Penecuro em duas canoas cheguei com os meus companheiros em caso do creoulo Lautério à 1 h. da tarde e o Tte. Leonel as 3 e aí fixamos a nossa residência, encontrando de novo o Mr. Jules, que nos mostrou todo sob a hediondez de seus egoísmo.

Dia 15 6ª f. ali passou-se por ser chuvoso.

Dia 16 sabado, ficando na barraca o Tte. Leonel, e outros ocupados em fazer farinha, parti par o mato em busca de uma serra, junto da qual se nos disse achar-se uma maloca. Os companheiros foram Francisco, filho do Tte. A gentia Ana o gentio menor João Pedro, Agostinho Moisinho, José Agostinho Leandro, Joaquim Teles, José Garcia de Souza, Joaquim Porfírio dos Santos e o creoulo Lautério. Tendo saído da barraca as 7 horas da manha fomos pernoitar em uma baixada, bem distante da serra.

Domingo dia 17 ali passei, indo somente 4 pessoas por passeio explorar os lugares visinhos.


[1] Como obra pessoal e para ser fiel ao fato histórico nesta edição é mantida a ortografia etimológica do autor, a partir da primeira edição dos diários do Pe. Nicolino, in Publicação nº 91 do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, Ministério da Agricultura, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, ano de 1946.

[2] A primeira correção histórica a partir dos registros de que fez a viagem no ano de 1876. É corrente a versão que foi somente no segundo semestre do ano seguinte (1877) que Pe. Nicolino teria desbravado as margens esquerda do Rio Trombetas e fundado a Uruatapéra. N.A

[3] Expressão que significa “passar pela cachoeira”. N.A

[4] Abreviatura de compadre

Os diários do Padre Nicolino – 1ª parte

  • a seguir, Transcrição ipsi literis do manuscrito original arquivado na biblioteca particular da família do General Cândido Mariano da Silva Rondon, no Rio de Janeiro, RJ.

EPÍLOGO

      Deixar falar quem sabe é atitude coerente com a história e fatos aqui narrados de próprio punho. Entretanto, há que se contextualizar a narrativa para buscar a maior aproximação daquele espírito inquieto do religioso, por onde passava, com quem falava, o que fazia e principalmente, o que disseram dele logo após a fatídica morte nos campos do Cuminá Grande, como dizia para o atual Erepecuru.

      Mas, a maior razão destes relatos é a disponibilização das narrativas para a necessária comparação de datas, fatos, nomes de lugar e pessoas, por cada qual que se dispuser a pesquisar a nossa história, e assim, reconstruir o grande imaginário local, base de todas as nossas ações.

      Assim, transcrevemos trechos de uma publicação histórica na capital do Pará, por volta do início do século XX (1900).

      “Tendo a Sociedade de Estudos Paraenses de dar á publicidade em sua Revista o Roteiro das Viagens que emprehendeu[1] o padre José Nicolino de Souza no rio Cuminá, affluente do Trombetas, julgo opportuno dar algumas notícias sobre a vida e as explorações d’aquelle prestimoso sacerdote.

      Em 28 de setembro de 1890, cheguei a Uruá-Tapéra, florescente povoação á margem esquerda do Trombetas, que poucos annos antes havia sido fundada pelo Padre Nicolino.

      Foi em Dezembro de 1877 que, sendo elle então vigário de Óbidos, veio á este logare, e, de terçado em punho, começou a desbravar o terreno, ajudado de alguns homens, que para esse fim havia convidado.

      Depois, graças á benéfica influencia que exercia sobre todos os seos parochianos, vieram novos trabalhadores, lavradores e commerciantes, que edificaram excellentes prédios, uma pequena Ermida[2] sobre o cume de um outeiro, á margem do rio, e elevaram a nova povoação ao grão de prosperidade, em que actualmente se acha.

      Da porta da Ermida vê-se perfeitamente a margem opposta, a corrente de água fresca e cristalina que o rio Jamundá traz em tributo ao opulento Trombetas.

      Foi á margen do Jamundá, na Villa de Faro que, em humilde cabana nascera José Nicolino de Souza, em 10 de Agosto de 1836. Fez seos estudos primários no modesto collegio S. José, que o venerando Bispo D. José Affonso de Moraes Torres havia fundado em Óbidos para dar ensino aos meninos pobres destas regiões.

      Outra não menos venerado Bispo, D. Antonio Macedo Costa, que tão heróicos esforços fez para levantar o nível moral e intellectual do clero de sua diocese, tendo occasião de conhecer o bom coração de José Nicolino, o mandou para a França estudar as matérias necessárias para um ministro do altar.

      Seguiu em 1862, contado já vinte e nove annos de idade, fez todos os preparativos no seminário de Serigueux, e depois passou para o de Aire, onde concluiu o curso theológico.

      Regressando ao Pará já com ordem de Presbytero, foi logo encarregado de leccionar no Seminário Menor da Capital.

      O Padre Nicolino era filho de uma índia, e pois descendente dessas pujantes tribus que em remotas eras dominaram como soberanas o rico Valle do Trombetas. Uma força occulta e irressistível attrahia sua alma contemplativa para aquellas explendidas regiões. Á seo pedido foi pelo seo prelado dispensado do magistério que exercia no Seminário da capital, e nomeado vigário de Monte-Alegre, e depois de Óbidos em 1875. Então teve occasião opportuna de realisar um pensamento que desde longo tempo o preoccupava; era o de penetrar n’aquelles vastíssimos desertos do Trombetas.

      Quando, no Seminário de Aire, em França, fazia seos estudos theologicos, dirigido pelos padres da Companhia de Jesus, o velho Padre Reitor do Estabelecimento lhe mostrou um manuscripto, redigido em latim pelos missionários da Companhia, o qual continha o itinerário de uma expedição feita desde o Orenoco até o Prata. Nesse manuscripto encontrou o Padre Nicolino notas preciosas, especialmente a noticia da existência de extensos campos ao sul das cordilheiras de Tumu-Cumac.

      ……………….

      Oitenta dias passei em n’aquelles explendidos desertos. Parecia insensível ás fadigas, ás privações e aos perigos: e tive realmente fundo pesar quando fui forçado a regressar.

      Quanto é rica esta nossa terra! …. Quando eu descia o rio Cuminá, os práticos das minhas canoas eram dos antigos habitantes dos mocambos, que tinham em grande veneração a memória do Padre Nicolino. Dois d’esses homens, Joaquim Sant’Anna e Guilherme do Espírito Santo[3], eram dotados de nobres sentimentos… Os mocambeiros me contaram muitas vezes, os trabalhos, a agonia, e a morte do seu amigo Padre Nicolino.

      “O Padre e nós tínhamos andado muito, me diziam elles, pelo meio das mattas. Uma tarde acampamos junto á um igarape de água fria e fundo de areia.

      Jantamos. Comnosco iam cinco meninos, discípulos do Padre. Estes meninos entoaram cantigas religiosos tristes, como costumavam fazer todas as tardes. Deitamo-nos em nossas macas. O Padre nos disse: – “Com mais dois dias enconramos as aldeias dos Pianocotós. Com mais três encontramos os campos”. Mas ao amanhecer o Padre nos disse: – “Estou mal!” Passou o dia com febres. Ás 4 horas da tarde, levantou a cabeça, e disse:

  • Oh minha mãi, minha mãi!

Alguns minutos depois, um menino chegou-se á rede, olhou e disse:

  • O Padre está morto!

Os meninos começaram a chorar em altos gritos. Nós, os homens, também choramos.

Toda a noite levamos a velar para que a onça não viesse carregar o corpo. Pozemos á cabeceira uma pequena cruz que o Padre costumava trazer ao peito, e accendemos uma vela de cera de cada lado. Ao amanhecer lavamos o corpo na água fria do igarapé, e depois o enterramos em baixo de uma castanheira. Fincamos uma cruz à cabeceira da sepultura. Passamos ainda ahi trez dias, e depois regressamos. Quando ao mocambo chegou a notícia que o Padre tinha morrido, todos se recolhiam ás suas casas e choraram sem consolação.

Trez annos depois voltamos, desenterramos os ossos, e os levamos para a sua egrejinha de Uruá-Tapera.

Com effeito, os habitantes do Trombetas e de Óbidos vieram em piedosa romaria inhumar os restos mortaes do seu vigário e amigo na ermida que elle próprio havia edificado. Uma pequena pedra o cobre. Tem esta singela inscripção, se não me falha a memória:

“Aqui jaz o Padre Nicolino José de Souza. Nasceu na Villa de Faro em 10 de Agosto de 1836. Falleceu em 12 de Outubro de 1882- Lembrança de seos amigos.”[4]

Foi um bom coração e uma grande alma. Quando eu subi o Trombetas e passei por Uruá-Tapera, fui logo visitar o modesto sepulchro do ousado explorador.

Lá dorme em paz o patriota em sua ermidasinha, que se avista ao longe, branca como uma bonina que se destaca sobre o verde-escuro da floresta.”

GONÇALVES TOCANTIS

Nada como a história para desmistificar a própria história!

A seguir, leiam com amor e dedicação os três diários do Padre Nicolino.

João Bosco Almeida Coordenador de Pesquisa da Fundação Ferreira de Almeida


[1] Nesta transcrição como na dos “Diários…” será observada a fiel grafia da época, como forma de legitimar os fatos e dar aos estudiosos da língua mater a oportunidade de cotejar a evolução e dinâmicas linguísticas. N.C

[2] Esse local é onde se acha o antigo Grupo Escolar Senador Lameira Bittencourt, hoje E.E.F. M. Lameira Bittencourt.

[3] Confira-se estas com as afirmações de próprio punho do Padre, nos seus diários a seguir narrados.

[4] Compare-se a data da morte atribuída por Gonçalves Tocantis e a que consta nos ‘Diários” que informa ser o dia fatal a 8 de novembro de 1882. N.C